27 de agosto de 2011

Michi Sarmiento “Aqui los Bravos! The Best of Michi Sarmiento y su Combo Bravo 1967-1977” (Soundway, 2011)

À data destas gravações estava a Frente Nacional no governo, grupos paramilitares (FARC, ELN ou EPL) no mato e uma mão-cheia de cartéis em metástase pelo país inteiro, o que algo dirá sobre o sentido de urgência aqui observado. Mas não se trata apenas disso. Porque outros – como Fruko y Sus Tesos, Wganda Kenya ou Afrosound – melhor corresponderiam a um impulso antológico que procurasse traduzir musicalmente o perigo, a paranóia e o delírio que então se estendiam pela sociedade colombiana. Apuram-se os instintos dos organizadores Roberto Gyemant, Will Holland e Miles Cleret, que, por exemplo em “Colombia! The Golden Age of Discos Fuentes”, sempre privilegiaram a excentricidade artística em detrimento de uma mais abrangente representação cultural. Crucialmente, o saxofonista Michi Sarmiento garante a primeira sem prejuízo da segunda. Nascido em Cartagena em 1938, o filho do maestro Clímaco Sarmiento amadurece com a moda do merecumbé (a fusão do merengue e da cumbia celebrizada por ‘Pacho’ Galán) e com uma febre modernizadora que actualiza para salões de baile – e bordéis – danças como o porro ou o mapalé. À sólida educação e à experiência desde cedo acumulada dever-se-á uma inclinação formalista cujas bases permanecem contrariadas por uma imperiosa necessidade de subverter tradições – um dos seus primeiros êxitos foi ‘La Vaca Nueva’, resposta a ‘La Vaca Vieja’, antigo sucesso do pai. Inextrincavelmente associado à editora Discos Fuentes e a Joe Arroyo (falecido há um mês), absorveu o impacto da produção afro-cubana e nova-iorquina da Fania com a disposição de um acelerador de partículas, mas foi ultrapassado pela vertigem saloia do vallenato e tecnológica do reggaeton, miragens recentes de uma utópica visão por si patenteada.

20 de agosto de 2011

Chico Buarque "Chico" (Biscoito Fino, 2011)

Filmados nas sessões de gravação deste álbum, há, em “Chico: Bastidores”, depoimentos de Chico Buarque sobre as novas canções, os ensaios ou os músicos que o acompanham. O estilo desprendido com que apresenta o processo, a curta duração de cada vídeo e a enumeração de dados triviais servem fins promocionais – metade do material carregado para o endereço entre 20 de Junho e 20 de Julho, data oficial de lançamento de “Chico”, estava exclusivamente acessível mediante a apresentação de uma senha atribuída com a pré-encomenda do disco – mas pouco revelam sobre deliberações artísticas cruciais ao seu entendimento. Excepto – e só a incapacidade de tratar criticamente a informação reunida durante a iniciativa, aliada à necessidade de gerar conteúdos diários, explicará o indiferenciado tratamento que recebeu a afirmação – quando diz o cantautor: “conheço cada vez melhor o meu instrumento [o violão]. Posso ir onde eu não ia; encontrar um caminho que era insuspeitado por mim há seis anos atrás. Tenho mais liberdade: às vezes parece que posso fazer tudo com a harmonia de uma canção. O que aconteceu desta vez é que talvez eu tenha amadurecido mais cada composição. Nada está ali por acaso” (no clip “Amadurecimento”, de 4 de Julho).

Efectivamente, temas como ‘Querido Diário’, ‘Se Eu Soubesse’ ou ‘Sem Você 2’ possuem uma riqueza cromática capaz de lembrar as parcerias – enquanto letrista – com Tom Jobim e, obviamente, Edu Lobo, em que, como então se dizia, todas as sílabas cantam (num ensaio de 1966, intitulado “Balanço da Bossa Nova”, o maestro Júlio Medaglia salientava os recursos de um texto que “não apenas significa, mas também soa”). E talvez se possa atribuir a esse maior domínio técnico sobre a música um inesperado relaxamento nos códigos poéticos – depurados e economicamente empregues –, que, nem por isso, compromete a rigorosa métrica. Ou, quem sabe, correspondem estas canções ao momento em que o escritor Chico Buarque passou a escrever letras mais como compositor do que como romancista. Porque se despem totalmente de artifício os múltiplos diálogos que, nessa perspectiva, aqui se estabelecem, integrando este repertório o cânone buarqueano com maior naturalidade do que – excluindo partes de “Paratodos”, em 1993 – quase toda a sua produção dos últimos 25 anos.

Pode entender-se à luz da renovação desse espaço singular a frase com que, no site, se refere a ‘Essa Pequena’: “é… tipo um blues. Aqui é tudo tipo alguma coisa: tipo um baião, tipo samba, tipo uma valsa. É tipo um CD”. A referência ao blues por quem cantou ‘Bancarrota Blues’, ‘O Último Blues’ ou ‘Bolero Blues’ é eminentemente biográfica, e a canção (e o verso “Meu tempo é curto, o tempo dela sobra/ meu cabelo é cinza, o dela é cor de abóbora”) reflecte sobre a paixão de um homem maduro por uma mulher mais jovem na altura em que o sexagenário Chico namora com a cantora Thaís Gulin, de 31 anos, reforçando-se a intertextualidade da leitura com a conclusão do narrador: “sinto que ainda vou penar com essa pequena, mas/ o blues já valeu a pena”. O que permitirá concluir, com redundância, que este “Chico” é tanto sobre o homem quanto sobre a obra. Ou, mais precisamente, pela passagem do tempo pelo homem e do homem pelo tempo, testemunhada em ‘Rubato’ (onde surge ainda a literária temática do duplo actualizada para um meio, da eufemística ‘influência’ à ‘pirataria’, em que impera o roubo) e na proustiana ‘Barafunda’ (com frases como “Era Aurora/ não, era Aurélia/ ou era Ariela/ não me lembro agora” e “foi na Penha/ não, foi na Glória/ gravei na memória/ mas perdi a senha”), e na forma em que, por entre patenteadas valsas murchas e voluntariosas marchas, se desenham arcos temporais para o passado (‘Querido Diário’ recorda ‘Pedro Pedreiro’ e ‘Sou Eu’ evoca ‘Você Não Ouviu’, ambas há 45 anos atrás incluídas na sua estreia), até, com ‘Tipo Um Baião’, se atingir um ponto de elegante sincretismo em que tudo fica já tipo um Chico.

13 de agosto de 2011

“Highlife Time Vol 2: Nigerian & Ghanian Classics from the Golden Years” (Vampisoul, 2011)

O estado dos mercados é de tal volatilidade que não permite que se acumulem estas antologias: vão, pelo contrário, substituindo-se e distinguindo-se as que trazem novidades, ainda que se contem mais as retiradas de catálogo nos últimos 15 anos do que as presentemente disponíveis. Por exemplo, “Tempos, Ramblers, Uhuru: Giants of Danceband Highlife”, da Original Music (do etnomusicólogo inglês John Storm Roberts), teve vida tão breve nos escaparates que se torna irrelevante referir os três temas que possui em comum com esta “Highlife Time Vol 2” – lembra, talvez, que são hoje os instintos de coleccionadores a nortear o que se baseava outrora na Antropologia. Não admira, portanto, que aqui, como noutras recentes introduções aos seus anos dourados, se elenquem teoricamente os elementos do sincrético estilo – ritmos tribais, bandas militares, canções de marinheiros e escravos emancipados, melodias crioulas, hinos anglicanos ou swing – ainda que traia o material reunido as intenções dos seus organizadores (não se encontram, aliás, ligações entre a gravação de ‘27 de George Williams Aingo e a de ‘84 de Chief Stephen Osita Osadebe). Mas é precisamente por não seguir o guião à letra que gera mais-valias: E. T. Mensah influenciado pela exposição à rumba congolesa e ao ska, um tema de “Afro Jazz”, que, em Londres, juntou Guy Warren a Amancio D’Silva, Don Rendell e Ian Carr, outros (de Charles Iwegbue e Celestine Ukwu) a iludir catalogações e, naturalmente, as gentis bordaduras à guitarra e os trompetes com surdina que melam ouvidos nas bandas de Victor Olaiya ou Victor Uwaifo. Até se perceber que o que se ouve ao longo do tempo não é apenas a manifestação, que com o género nasceu antes das independências, do sonho de se viver na alta-roda, mas já, depois das guerras civis, a da saudade de sonhar.

6 de agosto de 2011

Marcelo Camelo "Toque Dela" (Zé Pereira, 2011)

Sem comprometer uma identidade artística dependente do impacto emocional da sua mensagem, Marcelo Camelo revelou no seu primeiro disco a solo (“Sou/Nós”) uma visão ocasionalmente fraccionária e elementar dos constituintes da canção, arriscando invulgares assinaturas rítmicas, produzindo estruturas melódicas maleáveis, dirigindo arranjos de aparente instabilidade e criando uma espécie de campo de acção em que cruzava infinitamente ideário pessoal e memória colectiva – como se, após uma década ao serviço dos Los Hermanos a trabalhar com terra e fogo, tivesse passado a compor apenas com água e ar. O método parecia a mensagem, e, de forma irrepreensivelmente sintética, dilatou as fronteiras de uma linguagem poético-musical que não se supunha tão expansível, até, como as cápsulas do tempo que os cientistas lançam ao espaço, não se vislumbrar já outro material que melhor o representasse. Agora, com “Toque Dela”, dá dois passos atrás e retoma a linha enunciada pelos últimos temas que escreveu para a sua antiga banda – como ‘Dois Barcos’ ou ‘É de Lágrima’ – num ponto de irremediável cesura: precisamente o que tem origem em “Sou/Nós”. Resultam daí vários paradoxos – de que não será exemplo menor a sugestão do novo álbum poder soar simultaneamente anterior e posterior ao seu predecessor – e, de facto, nenhuma leitura linear se lhe ajusta (o que não surpreende, vindo de quem, com os seus vídeos assinados enquanto Orquestra YouTube, se interessou por exercícios de entropia musical). Mas, ainda que não imune ao proselitismo e à egolatria, “Toque Dela” redime-se sempre que ensaia actos de imprevisíveis consequências.