28 de agosto de 2010

Gilberto Gil "Fé na Festa"


Este “Fé na Festa” foi no Brasil lançado a 1 de Junho, mês de fogueiras, balões e fogos-de-artifício. E dominado que está pelo forró e pelos ritmos dos arraiais nordestinos (xotes, baiões, quadrilhas, xaxados) qualquer outra calendarização teria sido inoportuna. O que significa que Gilberto Gil está uma vez mais de regresso ao sertão e a São João, temas que na sua narrativa pessoal implicam cruzarem-se memória biográfica e invenção artística mas que neste momento sugerem antes um distanciamento de si próprio. Entregue à exuberância joanina, traz crónicas em vez de comentários, nostalgia em vez de reflexão, e uma sensibilidade familiar que evoca a banda sonora dedicada a Luiz Gonzaga que interpretou em “Eu, Tu, Eles” (2000) ou “O Sol de Oslo” (1998), abrilhantado pelo acordeão de Toninho Ferragutti, aqui um protagonista central. Esteticamente, produz pouco mais que um palimpséstico eco das construções poéticas em torno da identidade regional que ao longo dos anos sintetizou em canções como ‘Procissão’ (de “Louvação”, 1967), ‘Casinha Feliz’ (de “Dia Dorim Noite Neon”, 1985) ou ‘De onde vem o Baião’ (de “Parabolicamará”, 1992), e a que atribuiu paradigmática expressão no álbum “Refazenda” (1975). Mas também é verdade que só agora poderia ter escrito desta maneira, novamente inebriado pela matéria plástica de que dispõe (três peças de época, uma releitura de ‘Norte da Saudade’ – de “Refavela”, de 1977 – e nove originais guiados de maneira extática por Ferragutti, Nicolas Krassic no violino e Sérgio Chiavazzoli no cavaquinho), glorificando um espírito colectivo que se projecta eterno, mas, simultaneamente, tão consciente do tempo histórico e, no limite, profundamente desiludido. O paradoxo desperta uma inquietação: voltará Gilberto Gil a colocar-se à frente do destino ou continuará a correr atrás do prejuízo?

21 de agosto de 2010

Liliana Barrios "Épica"

Interrogando-se sobre a melhor forma de pegar em ‘Naranjo en Flor’, há muito gravado em pedra por Roberto Goyeneche, Liliana Barrios vagueava em Zárate pelas margens do Paraná e parecia o rio murmurar-lhe aqueles primeiros versos: “era más blanda que el agua, que el agua blanda”. Chegando ao mar na cidade natal dos seus compositores, Homero e Virgilio Expósito, aproximou-se enfim da epifania que a conduziria a “Épica”, e que a pretexto da coincidência nominal dos irmãos argentinos com os poetas da Antiguidade Clássica retrata a sua obra como uma odisseia em torno da história do tango. Aliás, reunindo material compreendido entre 1897 e 1973 e despistando a canção porteña até ao virar da esquina encontrar o bolero, a milonga ou o candombe, aprofunda o paralelismo estético com os gregos ao concentrar-se nos versos de Homero que, rasgando o papel como punhais e precipitando-se velozes, directos e definitivos, foram por Virgilio musicados de forma ambígua, muitas vezes contrariando o seu sentido literal embora nunca lhes negando o carácter teleológico. Por sinal, a tendência conceptual na produção da cantora não é nova – gravou “Gardeliana” em 1999 e “Troileana” em 2006, trazendo o disco dedicado a Aníbal Troilo a sua voz à Europa pela primeira vez – e revela-se ocasionalmente permeável ao calculismo. Mas aqui, com Abel Rogantini ao piano, Walter Ríos no bandoneón e Pablo Agri no violino à frente de um sexteto de cordas, deixa-se simplesmente ir, flutuando entre espaço e tempo e evitando os ardis interpretativos que tantas vezes empestam de perfume barato canções que no ar mais não devem deixar que o seu doce aroma. E, para já, distancia-se dos estilos de Lidia Borda, María Volonté, Gabriela Torres ou Silvana Grégori e aproxima-se antes de Silvana Deluigi, a mais distinta voz feminina no tango dos últimos quinze anos.

14 de agosto de 2010

Konono Nº 1 "Assume Crash Position - Congotronics 4"

Uma imprensa cultural organizada como uma ciência e habituada a tratar como antropologia obscuras gravações africanas estremeceu ao primeiro volume de “Congotronics” e, justiça lhe seja feita, nem no derradeiro instante guinou o volante para evitar a colisão. Pelo contrário, usou essa força em proveito próprio e – como quem expõe um salto evolutivo há muito mantido sob os radares – incluiu Konono Nº1 numa linhagem de dissensão que partia da “Arte do Ruído” de Russolo, alcançava o matricial krautrock dos Can, repetia o código genético do dub místico de Lee Perry, criava descendência na orquestra de ferro-velho dos sonhos de Tom Waits ou, na aleatoriedade intrínseca ao exercício, se ramificava num êxtase rítmico ritualista de estirpe avant rock. A sujeição do grupo (que se julga estreado em gravações na meia hora de indução ao transe que Bernard Treton registou em 1978 para “Musiques Urbaines à Kinshasa”) à visão do formulista ocidental repete o equívoco de quem baralha dignidade humana e orgulho étnico. Como se a tradição pudesse apenas manifestar-se de forma absoluta ou de nenhuma. Quando, aqui, se trata antes da sincronização de todas as visões e da diluição do tempo histórico. Porque na electrificação e amplificação do likembe (idiofone próximo da mbira ou do kisanji) e no processamento do som das suas lamelas metálicas se pressente um impulso de contaminação que opera tanto no interior quanto no exterior dos códigos musicais padronizados. A tendência, sublinhada pela mão do produtor Vincent Kenis – para o grupo de Mingiedi Mawangu como esteve Teo Macero para Miles Davis –, revela-se inequívoca e dramaticamente central à aceitação da progressiva familiaridade destes sons e da crescente estranheza dos seus processos. E no que se revelava insular e inacessível, começa-se finalmente a reconhecer o mundo.

7 de agosto de 2010

Hedzoleh Soundz "Hedzoleh" & Sweet Talks "The Kusum Beat"

Como a Sublime Frequencies ou a Soul Jazz também a Soundway se dedica agora à reedição de álbuns originais, reduzindo assim o impacto da sua própria mediação. No caso, cria condições para que se entenda hoje, e nos seus termos, o movimento dos que no Gana de meados de 70 ousaram ter mão no seu destino. Então, dezenas de grupos com raízes no período de ouro do highlife aí asfixiavam lentamente – o país em depressão desde que a CIA patrocinou o derrube de Kwame Nkrumah – enquanto, seguindo o exemplo de Osibisa ou Guy Warren, aspiravam sair para o Togo, Benim ou Nigéria. Não admira que se dedicassem a uma premissa comum na música popular africana do período: conciliar elementos de distinção folclórica que garantiam características únicas com recursos ocidentais (de Santana a James Brown) de instantâneo reconhecimento. Hedzoleh Soundz e Sweet Talks cumpriram o desígnio e, por sinal, partiram mesmo: os primeiros levados por Hugh Masekela, que lhes testemunhou um concerto na comuna de Fela Kuti e viria a adoptar como banda de apoio em “Introducing Hedzoleh Soundz” e “I Am Not Afraid”, e os segundos com um “Hollywood Highlife Party” gravado em Los Angeles em 78 durante uma digressão com os Crusaders. Mas, no entanto, por mais que fitassem o firmamento, certamente nem em sonhos o anteviram quando nestes manifestos de liberdade e fantasia se entregaram à ideia de um mundo em que pudessem caminhar de cabeça erguida.