25 de janeiro de 2020

John Coltrane Quartet “Impressions Graz 1962” (Ezz-thetics, 2019)

“Stefaniensaal, Graz”. Para colecionadores, isto lê-se como um feitiço. Aliás, aplicado à digressão europeia de novembro de 1962 de John Coltrane, McCoy Tyner, Jimmy Garrison e Elvin Jones, em disco, é tal e qual como tropeçar em “Olympia, Paris”, “Konserthuset, Stockholm”, “Kulttuuritalo, Helsinki”, “Falkonercentret, Copenhagen”, locais privilegiados para a experiência do sagrado, quer se comungue ou não na igreja de São John William Coltrane. Durante anos, a coberto da noite, e em edições mais ou menos cuidadas, foram chegando ao mercado registos com origem nos arquivos dos organismos de radiodifusão responsáveis pela transmissão de cada um destes concertos – e, em casa, agarrados às telefonias, como no “Orfeu” (1950), de Jean Cocteau, imagina-se ouvintes do mundo inteiro a exclamar: “Mas de onde é que isto vem? Nenhuma estação emite coisas destas. De certeza que me estão destinadas!” Aliás, logo após a morte de Coltrane, em 1967, e no caso de uma eventual retransmissão, estes ouvintes transformavam-se todos numa espécie de caça-fantasmas, como o sueco Friedrich Jürgenson, autor, na década de 60, de livros insólitos como “Transmissões de Voz com Defuntos” ou “Contacto por Rádio e Microfone com os Mortos”. Como o engenheiro de som Rudy Van Gelder, que sugeriu o título a Coltrane, por ele não parar quieto em palco, viam-se na obrigação de fazer como no lado B de “Live at the Village Vanguard” e de se pôr a ‘Chasin’ the Trane’. Também aqui, nesta “License of original tapes from ORF Steiermark, Graz”, se dá por dificuldades de captação. Como não? Coltrane lidava com materiais que começavam a pensar pela própria cabeça, a conquistar forma definitiva, a aprender a coexistir com os outros mas a ganhar autonomia, aparentemente instantâneos mas profundamente cerimoniais, algo descontínuos e ocasionalmente anacrónicos mas nem por isso menos imediatos. Estava a levar o jazz da adolescência para a idade adulta e, em ‘Autumn Leaves’ ou ‘Impressions’, a dar vazão às suas dores de crescimento.

“Mogadisco: Dancing Mogadishu – Somalia 1972-1991” (Analog Africa, 2019)

Nas idas e vindas da emissora nacional, cujo arquivo espiolhava, Samy Ben Redjeb deslocava-se num todo-o-terreno com vidros à prova de bala e uma escolta de quatro homens armados com AK-47, mas andava com a cabeça na lua. Estava na capital da Somália há um mês e, numa sala de 100 m2, num canto, em equilíbrio precário, por entre cerca de 20.000 bobines, funcionários da Rádio Mogadíscio haviam-lhe apontado uma pilha de fitas por processar: “Trata-se de música que ninguém consegue identificar, na sua maioria instrumental ou um bocado estranha”, diziam-lhe. Redjeb sentia o tempo a dobrar-se sobre si mesmo, as coisas a voltar ao início, embora as feridas que à sua passagem se acumulam estivessem por todo o lado – e talvez tivesse viajado até ali precisamente para lhes arrancar as crostas. 

Na bagagem, levava já formidáveis achados: de 1979, por exemplo, umas gravações da Bakaka Band da altura da Guerra de Ogaden; de 1991, outras da Dur-Dur Band, captadas na Etiópia e no Djibuti, em plena fuga à Guerra Civil. Mas o que mais o impressionava eram os temas de meados de 80 de Omar Shooli (no ritmo dhaanto, cuja síncope é em tudo semelhante à do reggae), de Mukhtar Ramadan Iidi (vocalista da Shareero Band e, depois, da Dur-Dur), dos Iftin (do cantor Mahmud Abdalla Hussen, mais conhecido por Jerry) e de Shimaali Ahmed Shimaali com Ahmed Sharif Killer (quando estavam os dois na Iftin) – devidamente reprocessada no idioma local, uma retransmissão de sinais captados a ocidente que só aquele casamento de conveniência entre o regime de Siad Barre e os EUA permitia. Entrevistando alguns dos músicos que sobreviveram a essa era, Ben Redjeb toma nota de nomes como James Brown, Jimmy Cliff, Fela Kuti, Santana ou Michael Jackson, e assiste, maravilhado, à descrição de noites lendárias passadas entre dignitários do Golfo de Áden nas boates dos hotéis Juba, Al-Uruba, Lido ou Jazeera Palace, hoje em ruínas. No seu próprio quarto, consciente da sua missão – digitalizar o maior número de canções possível para as lançar através da Analog Africa – mas a aguardar indicações do diretor da Rádio, frustrado e vagamente paranóico, Redjeb estava um pouco como Martin Sheen no início de “Apocalypse Now”, à beira de mergulhar no coração das trevas. Na manhã de 11 de dezembro de 2016 acorda com um estrondo: um ataque suicida na zona portuária fazia 30 mortos. Sobressaltado, vê da janela a sua escolta a chegar. Falam como se nada fosse e, na Rádio, após um ligeiro compasso de espera, o seu interlocutor desfaz-se em desculpas, pois atrasou-se a deixar no cemitério o corpo de um amigo apanhado na explosão. Redjeb olha para ele, sem saber bem o que dizer. Não faz mal – na Somália, é para isso mesmo que serve a música.

18 de janeiro de 2020

The Comet Is Coming “The Afterlife” (Impulse!, 2019)


Mais um capítulo desta saga, nove meses – apenas – após a edição de “Trust in the Lifeforce of the Deep Mystery”. Portanto, dir-se-ia que “King Shabaka” (Shabaka Hutchings, saxofone tenor), “Danalogue” (Dan Leavers, sintetizadores) e “Betamax” (Max Hallett, percussão) nos guiam da conceção ao parto de um admirável mundo novo. E dão mostras de ser de tal forma movidos a alcaloides que até fica bem lembrar uma frase, aí, da bíblia de Huxley: “Mas eu não quero conforto. Quero Deus. Quero poesia, o perigo autêntico, a liberdade, a bondade. Quero o pecado. […] O direito de ser infeliz. De não ter o que comer [...] e de viver em contínua apreensão face ao dia de amanhã.” Pois, não seja por isso. A abrir “The Afterlife”, na voz de Joshua Idehen, no papel de terceiro anjo do Apocalipse, surge esta advertência: “The comet is coming/ Babylon burn down/ Our time has come/ Our clock has run down.” Para evitar a escatologia cristã, esse corpo celeste encontra-se igualmente no “Épico de Gilgamesh” ou no “Popol Vuh”, por exemplo: “De além do céu, caiu uma grande quantidade de resina [que] acabou por [consumir o Homem].” De facto, a fechar o disco, em ‘The Seven Planetary Heavens’, dá-se por nova ressonância babilónica e, de repente, parece que temos em mãos um título da Impulse! contemporâneo de “Universal Consciousness” (1971) e de “Lord of Lords” (1972), de Alice Coltrane, ou de “Astro Black” (1973) e de “The Nubians of Plutonia” (1974), de Sun Ra – daqueles em que revelação e redenção andam de mãos dadas com o desejo de repatriação e renovação da espécie (há aqui notas pedais em ação de terraplanagem intergaláctica e arpejos arcangélicos a acompanhar cada feto dado à luz). Mas não há hipótese: ligar a válvula de oxigénio de uns ao tubo de escape de outros é sempre cataclísmico.

"Space Funk" (Soul Jazz, 2019)


De meados de 80, não tinha eu ainda dez anos, recordo uma cassete em quarta ou quinta geração com nomes como Afrika Bambaataa & Soulsonic Force, Planet Patrol, Cybotron, Grand Mixer D. ST, Jonzun Crew, Grandmaster Flash, Quadrant Six, Newcleus, Captain Rock, Davy DMX, Xena, Warp 9, Awesome Foursome, Whodini. Cheiinha de gralhas, pela mão de vizinhos com família nos EUA, aterrava, ali, numa praceta situada nas imediações do estádio do Clube de Futebol “Os Belenenses” – há tanto tempo que ainda nem havia o Belenenses SAD – e libertava ondas de choque dignas da chegada de uma nave espacial à superfície terrestre – ou quase. É o que me vem à memória, agora, mal leio o subtítulo desta compilação: “Afro Futurist Electro Funk in Space, 1976-84”. Mas, como de costume, tratando-se da Soul Jazz, esta história não se conta a partir das falas dos protagonistas mas, sim, daquilo que os atores secundários fazem – aliás, nem aqui estão os Manzel de ‘Space Funk’ (1977), quanto mais os ‘meus’ nomes. Está Santiago (dos Mandrill), Osé (aliás, James McCauley), Jamie Jupitor (Gregory Bussard, conhecido futuramente como Egyptian Lover) e gente muito mais obscura, como LEO, que em ‘Fee Fi Fo Fum’ (1983) punha um robô a atualizar o aviso dos Temptations, em ‘Get Ready’ (“So, fee-fi-fo-fum/ Look out baby, ‘cause here I come”), ou os Sonarphonic, de ‘Super Breaker’ (1984), com uma mão no chão e outra a atingir a miudagem do breakdance onde mais doía (“I break with my hands/ I break with my feet / I break to the music / And rock you to the beat/ I’m the baddest breaker in the world/ What makes me special? Huh, I’m a girl!”). Emissários de um futuro próximo em que as máquinas advertem: “There’s nothing we can’t understand/ We’re smarter than the normal man!” Já lá chegámos?

11 de janeiro de 2020

Beethoven: Complete Works For Cello And Piano (Deutsche Grammophon, re. 2019)

Assinala-se o 250º aniversário do nascimento de Beethoven e, nas lojas, as secções de discos ganham, por fim, uma locomotiva com força o suficiente para atrelar os vagões que quiserem: Deutsche Grammophon, Naxos e Warner, por exemplo, já lhe engataram a mastodôntica obra completa em exaustivas edições de 118, 90 e 80 CD respetivamente. Mas, entre idas a estúdio e aos arquivos, quem pôs o comboio em andamento foi, mesmo, o selo amarelo, em setembro último, com a integral das sonatas para piano de Kempff (8 CD), a dos concertos para piano de Lisiecki com a Academy of St. Martin in the Fields (3 CD), a das sinfonias de Nelsons com a Filarmónica de Viena (5 CD) e, em nova masterização, a da obra para violoncelo e piano gravada há 60 anos por Pierre Fournier e Friedrich Gulda. Comparando o mérito de cada peça, como é óbvio, e se estivéssemos no filme “Expresso do Amanhã” (2013), de Bong Joon-ho, estas cinco sonatas e três conjuntos de variações (dois inspirados por “A Flauta Mágica”, de Mozart, outro assente num tema de “Judas Macabeus”, de Handel) apareceriam numa das últimas, miseráveis, carruagens, entre os fracos e os oprimidos – e a sua passagem a primeira classe diz muito sobre o quão revolucionária e reconstitutiva foi a ação desta parelha. Aqui, nas suas mãos, sem ser necessário sugerir que a sua ambição enquanto compositor permanecia algo suprimida, honra-se o que, desde a primeira hora, mais libertário e emancipatório Beethoven possuiu – e, melhor que Fournier, não houve ninguém, assim, tão capaz de conferir um charme digno de abertura francesa aos adágios iniciais do Op. 5. Do mesmo modo, poucos, como Gulda, conseguiram projetar a melancolia que se pressente no Op. 69 de forma tão serena, como um efeito que tivesse origem em precedentes remotos e não naquilo que o violoncelo acabou de dizer. Tudo isto, e mais (como um Op. 102 definitivo), sem prejuízo do choque que era ver músicos de personalidades e estilos tão contrastantes a tender para o mesmo fim: Beethoven como o ponto em que todo o estereótipo se subverte. Vejam lá bem que até as lojas de discos ganham outra vez movimento.