Esta, de que aqui se fala, não é bem a famosíssima
Mathilde da canção de Brel. Mas, ali, no verão de 1908, após o regresso da sua
mulher a casa, também Arnold Schoenberg teve razões para celebrar e cantar:
“Mathilde est revenue.” A festa não durou muito, como se sabe. Mas não nos
adiantemos. Por enquanto, continuamos em 1908, o ano da primeira exposição de
Schiele ou da formalização da Sociedade Psicanalítica, com Freud, em reuniões, a
tirar o véu dos mistérios da mente humana – ou assim se pensava – por entre uma
densa nuvem de fumo procedente de charutos. Durante as férias, como tinha feito
em 1907, aliás, Schoenberg convida o jovem artista Richard Gerstl a passar uma
temporada consigo, Mathilde e os filhos na idílica estância termal de Gmunden,
em pleno distrito lacustre pré-Alpino. Era um amigo íntimo, Gerstl. Em Viena,
tinha o seu estúdio no mesmo complexo habitacional dos Schoenberg, que o
apresentou a Alban Berg, Anton Webern ou Erwin Stein, e dava aulas privadas de
pintura a Arnold e Mathilde – mas, como em “A Fera Adormecida” (1954), viu-se a
ter um caso com a mulher do homem que lhe abriu as portas de casa. Ao certo, não
se sabe quando se apaixonaram. Mas coloca-se a hipótese de Schoenberg os ter
surpreendido in flagrante delicto em Gmunden, em finais de agosto,
com Richard e Mathilde a decidirem-se imediatamente por fugir. Dias depois, e
após longas conversas com Webern (certamente enviado por Arnold), Mathilde
volta para o marido.
Supõe-se que se terá continuado a encontrar em segredo com
o amante, e que terá eventualmente posto fim definitivo à relação – ou melhor,
como ela escreveu numa carta a Alois, o irmão de Richard, foi “ele que tomou a
escolha pelos dois” quando, a 4 de novembro, subiu ao seu ateliê, queimou os
quadros, espetou uma faca no coração e se enforcou. De tudo isto, derramou-se o
sangue quente e o suor frio por duas obras-primas incluídas neste CD: pelo
“Quarteto de Cordas Nº 2” de Schoenberg, composto precisamente ao longo do
verão de 1908, e pelo “Quarteto de Cordas Nº 2” de Alexander Von Zemlinsky, o
irmão de Mathilde, escrito em 1913 mas repleto de referências cifradas aos
acontecimentos de há cinco anos (pelo seu papel nesta história, está aqui igualmente
“Langsamer Satz”, de Webern). Mas a tragédia também ecoa em “Erwartung”
(Schoenberg, 1909), “Kammerkonzert” (Berg, 1925) e “Lulu” (1935). Nunca como naquele
instante em que se dissociou Schoenberg da realidade tal como a conhecia e, com
ele, a música tal como todos os outros a conheciam, terminando o quarteto com
uma voz [nesta gravação, de Elsa Dreisig] a cantar um poema de Stefan George oxigenado pelo “ar de outros
planetas” em que o narrador se “dissolve em sons” num “mar de radiância
cristalina”. Freud teve certamente de acender novo charuto.
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