28 de novembro de 2015

Radu Lupu “Complete Recordings” (Decca, 2015)



De Lupu, há uns dez anos, iam saindo genéricos como “… Plays Brahms”, “… Plays Schubert”, “… Plays Beethoven”, com a Decca a marcar passo até que o romeno se decidisse por voltar aos originais. Quando as suas reticências se prolongaram, a editora reagiu lançando as lapidares “Complete Decca Solo Recordings” e “Complete Decca Concerto Recordings”. Agora que se cumpriram duas décadas sobre a sua última ida a estúdio, o pianista entra no clube dos septuagenários (depois de Argerich, Pollini, Barenboim, Pires ou Freire, contemporâneos seus com que foi sendo comparado) e a etiqueta mostra que nunca o chegou a remover do altar, reunindo efetivamente as suas gravações completas. Aqui estão, portanto, os seus discos com Barbara Hendricks produzidos para a Warner, bem como os que, a quatro mãos, dividiu com Barenboim na Teldec e com Perahia na CBS, a somar, então, aqueloutros, mais emblemáticos, que registou de 1970 a 1993 para a chancela britânica. Entre esses, não obstante a excelência da sua integral de sonatas para violino e piano de Mozart com Szymon Goldberg e o inultrapassável brilhantismo do LP dedicado às de Debussy e Franck que partilhou com Chung, é enquanto solista e a solo que se destaca: no terceiro concerto de Beethoven (com Mehta e a Filarmónica de Israel), quase perigosamente refinado, nas sonatas de Schubert (tanto o dos estados de espírito mais inacessíveis quanto o das emoções à flor da pele), nas coleções do insólito de Schumann (“Cenas da Infância” e “Kreisleriana”) e nos derradeiros opúsculos de Brahms, música que mergulhou na escuridão que vivia dentro de si.

Kenny Barron “At the Piano” (Xanadu/Elemental, 2015)



Após uma salva inicial de meia dúzia de títulos, a campanha de reedições do catálogo da Xanadu começada no verão passado pela Elemental é agora enriquecida com novas referências: “Skate Board Park”, de Joe Farrell, sem a esperada reprodução da capa original, “Feelin’s”, de Teddy Edwards, de modo imprevisto, já que sempre se supôs tratar-se de um ativo da Muse, e, sem acidentes de percurso, este “At the Piano”. O disco, de certa forma, era um ás que Don Schlitten tinha na manga. Conforme escrevia nas suas notas de apresentação: “A 2 de abril de 1973 produzi um álbum de Kenny Barron, que, mais tarde, batizámos como ‘Sunset to Dawn’ [precisamente para a Muse, que dirigia com Joe Fields]. Foi ao longo da gravação de ‘A Flower’, [tema] com a delicadeza e o requinte que o seu nome indica, que decidi que viria um dia a produzir um disco inteiro de piano solo [seu].” Isto, porque, presume-se, da sessão, ‘A Flower’ era o único registo em que o pianista ou não recorria ao quarteto que o acompanhava ou dispensava o piano elétrico. Com resultados invariavelmente superlativos, Barron continuou na Muse, mas só quando Schlitten o pôde acolher na sua nova editora, em 1981, se estreou, então, num formato que se lhe diria assentar como uma luva, embora, para os padrões da época, não deixasse de parecer anacrónico. Em boa hora o fez, claro. À sombra de Tatum, Powell ou Monk, (quase) todo de um deslumbre sem ostentação, intricado sem chegar a ser incoerente, mais notável pela elegância das suas linhas do que pelo que põe em relevo, é um marco na sua carreira e, quiçá, na vida de quem o escuta.

“Coxsone’s Music” (Soul Jazz, 2015)



No que diz respeito à narrativa Studio One, depois dos muitos que deu já em frente, dir-se-ia que a Soul Jazz dá agora o proverbialmente necessário passo atrás. Aliás, mal surgiu o anúncio desta antologia foi num não menos popular rifão de Marcus Garvey que se pensou: “Um povo que não conhece a sua história e não valoriza o seu passado é como uma árvore sem raízes.” Ou seja, no plano de lançamentos da editora britânica, “Coxsone’s Music” pode ter chegado após aquela inaugural sequência de ações perfeitamente descrita em “Studio One Jump Up: The Birth of a Sound, Jump Up Jamaican R&B, Jazz and Early Ska”, de fevereiro último, mas os acontecimentos que vem relatar são os que imediatamente a precederam. Daí o seu rigoroso subtítulo: “The First Recordings of Sir Coxsone The Downbeat 1960-62”, quando se sabe que Clement “Sir Coxsone” Dodd só em 1963 fundou o estúdio e editora Studio One. Esperar-se-ia, apenas, que a prosa sobre os materiais aqui reunidos fosse mais coalescente com a dos factos que culminaram na independência da Jamaica, promulgada precisamente a 6 de agosto de 1962 – assunto de todo ausente das notas de apresentação que compõem parte significativa das 28 páginas do livreto. Pois aquilo que cantavam Clancy Eccles em ‘Freedom’ ou Basil Gabbidon em ‘Independent Blues’ ganharia assim densidade dramática, para não falar da acuidade de que, nesse contexto, se revestiriam as bíblicas ruminações de Jiving Juniors em ‘Over the River’ ou, novamente, de Eccles em ‘River Jordan’. Porque Coxsone mais não fez que conduzir a música jamaicana a um terreno fértil em milagres.

21 de novembro de 2015

"Lang Lang in Paris" (Sony, 2015)



Chopin: Scherzi; Tchaikovsky: Les Saisons
Lang Lang começa lentamente a tocar a Barcarola, de “As Estações”, de Tchaikovsky, e logo o ecrã é tomado por platitudes turísticas: o Sena cruzado por pachorrentos Bateaux-Mouches, a Pont Neuf atravessada por vaidosos pares de namorados, uma criança deslizando de trotinete até ao Quai de la Tournelle, a basílica de Sacré-Coeur, inchada como um zepelim entre as nuvens, o Génie de la Liberté, orientando o trânsito da Place de la Bastille enquanto carrega na mão esquerda as correntes quebradas do despotismo, o agulhão sombrio da catedral de Notre-Dame, o foguetão da torre Eiffel apontado ao céu lilás. A cada plano da cidade corresponde outro do pianista chinês, dependurado de umas águas-furtadas como uma górgone, sentado à mesa de um café ou admirando a vista de um terraço. De olhos bem abertos e com o cabelo cuidadosamente espetado, traz à memória um daqueles gatos que Raymond Guix pinta no seu estúdio da rua Lepic e coloca em vigília noturna por toda a Paris. Em off, fala das fortes relações entre a capital francesa e a música romântica. Mas o clima dominante é o do último verso de Pleshcheyev que, em epígrafe, acompanhava a edição original da Barcarola, um de “misteriosa melancolia”. E, de súbito, é como se através do DVD se viesse revelar uma dolorosa singularidade em cada imagem, em cada gesto e em cada nota de música. De forma inesperada, é na obra do russo (mais dedicada aos meses do ano do que propriamente às suas estações) que Lang Lang a projeta, já que no Chopin dos quatro Scherzo se esforça demasiado por introduzir um raio de sol num local em que a luz não entra.

Cheikh Lô “Balbalou” (Chapter Two, 2015)



Radicada em Paris, a brasileira Flavia Coelho escrevia esta semana no Facebook que não ia “baixar a cabeça perante aqueles que querem acabar com a nossa liberdade e cultura”, mantendo em cartaz os concertos já anunciados. Neste disco, mais concretamente em ‘Degg Gui’, dá voz a qualquer coisa que tem a ver com isso quando, em português, canta que “Mentira traz medo e dor/ A verdade é bem mais simples nos conectados num canal de amor” e, de forma mais evangélica, “Abre seu coração hoje/ Ele te salvará amanhã”. Neste último verso Cheikh Lô identifica um famoso credo do marabuto Ibra Fall, discípulo de Amadou Bamba: dieuf dieul, isto é, cada um colhe aquilo que semeia. E é à luz desse mundo de retribuição que “Balbalou” pode ser entendido. Por isso é com espanto que, em ‘Doyal Naniou’, venha o senegalês (por filiação) falar de Thomas Sankara, Laurent-Désiré Kabila, Robert Guéï, William Tolbert, Moussa Traoré ou Nino Vieira enquanto “vítimas de assassinato”, não tanto enquanto revolucionários, para concluir que, em África, e demais paragens, “Já chega de golpes de Estado”. Na última estrofe da canção é Oumou Sangaré a reclamar “Paz em Casamansa/ Paz no Mali/ Baixem as armas”. Como é óbvio, precisamente o mesmo assunto de ‘Baisson les armes’, depois de Lô chamar a atenção para “Ucrânia, Rússia, Síria, Afeganistão, República Centro-Africana” e deduzir que palavras, leva-as o vento. Florbela Espanca dizia o mesmo das cantigas, e aqui são as de amor – incluindo uma versão de ‘Suzana Coulibaly’, de Sam Mangwana – que se revelam politicamente mais lúcidas. Felizmente estão em maioria.