30 de julho de 2011

Entrevista a Marcelo Camelo

Em “4”, o derradeiro álbum dos Los Hermanos, pressentia-se um emergente paradigma autoral cuja plena manifestação dependia da supressão da coerência estética e formal normalmente associada a bandas. Anunciado o hiato, em 2007, a acção dos seus principais compositores – Marcelo Camelo a solo e Rodrigo Amarante nos Little Joy – deu asas à ideia, mas foi Camelo, com “Sou/Nós”, que melhor a concretizou. Numa simultânea manifestação de géneros (pós-rock, samba, choro, música clássica) e tempos (mítico, histórico, psicológico, diegético), produziu um disco com a eternidade no horizonte, a que dá agora seguimento.

“Sou/Nós” continha canções que evidenciavam a problemática da sua organização. Em “Toque Dela” identifico inquietações semelhantes. Interessa-lhe explorar os limites da sua linguagem?
Estar no limite das minhas possibilidades é, para mim, um sinal específico de avanço. Exploro o que ainda não conheço como um método para obter novos resultados. Há uma certa orientação inicial para a diferença que se vai solidificando conforme o novo método se estabelece. O motivo disso posso intuir que é um amor por aquilo que não sinto, não sei, não vejo, nem ouço.

Apesar do muito que os une, que razões o levaram a distanciar formalmente este álbum do anterior?
São muitas razões somadas a dançar num jogo de forças. Esse jogo é fluido e leva-me para lugares muito diferentes em cada consideração. No entanto, o resultado deste jogo, que sempre se concretiza num disco, modifica aquele plano inicial de onde parti. De modo que ao final de um disco ou de uma tournée já não sou aquele que compôs as forças conflituantes que lhe estão na origem. É através desta modificação que a própria música causa na gente que o jogo de novas perguntas se estabelece. Por isso, as diferenças entre um disco e outro são as marcas da mudança. Representam a geografia deste percurso invisível. O tanto que os discos se parecem é o tanto que eu não mudei.

“Toque Dela” distingue-se também nos arranjos para instrumentos de sopro. Referindo-me à espessura tímbrica e cromática que proporcionam tuba, trombone, fliscorne ou sax barítono, porquê a abordagem?
Gosto de fazer uso do naipe em geral como um elemento estético quase separado do resto do conjunto. É uma peça que entra com protagonismo e autonomia, em oposição à ideia de um arranjo que se misture e esconda entre os elementos. Faço isso para manter a linguagem narrativa da voz – e assim a linha que conduz o resto – sem ter que usar em excesso a própria voz ou recorrer à letra, que tanto exige da nossa percepção. É como se mantivesse o fio da história que estou a contar sem ter de chamar demasiada atenção.

Partes de “Toque Dela” são dominadas por uma guitarra que não destoaria numa sequência entre Buddy Holly ou Shadows. Presumindo que não formularia as coisas exactamente nestes termos, pergunto-lhe antes: qual a importância da intuição no momento destas escolhas?
Eu só tenho intuição. É a minha maior aliada, a minha bússola. Acho que deve ser assim com todo mundo, não? Entendo muito pouco tecnicamente do que está acontecendo e sempre uso metáforas para tratar daquilo que estou cuidando no disco: “Um clima mais pôr-do-sol”, “o Elvis em cima de um Volkswagen”, “o vento num carro descapotável”. O que importa é o plano geral das coisas. Os detalhes estão ao serviço desta expressão maior que está bastante contida numa primeira audição. Foi neste lugar que tentei atuar neste disco, me opondo ao anterior onde voltei a minha intuição para um lugar menos localizado no tempo e no espaço.
Noto neste disco a presença metafórica do mar (há instrumentos que o imitam, crescendos e decrescendos que o lembram, abundam ritmos litorâneos, letras explicitam-no). Foi algo presente no seu espírito?
Acho que venho caminhando para esta ausência de pulso firme e pela escolha desta ideia rítmica mais fluida desde o primeiro disco. Boa parte do que faço tem a ver com um sentimento que não é representado pelo som que ouço na rua. É uma tentativa de ouvir mais uma música que bate de acordo com o compasso da minha percepção. Eu sinto em mim uma música com mais simultaneidade do que com elementos estanques. Sinto as ideias e os conceitos e as noções se sobreporem mais do que se anularem. E sinto as horas do dia, os minutos, os segundos, passando cada qual com o seu tempo, com a sua vontade. Tento fazer uma música que obedeça a este fluxo porque sinto que é um jeito de perceber as coisas que não encontra muita representação, principalmente na música pop, que é o que eu faço.

Continua a utilizar ritmos tradicionais (europeus, afro-brasileiros, caribenhos), mas raramente abandona o seu contexto específico enquanto compositor, quase como se definisse dois planos de ação simultâneos. É um diálogo que julga importante estabelecer nesses termos?
Acho que parte disso vem do canto imemorial da música regional, dos nómadas deste mundo que trouxeram para os cantos do planeta esses sopros ciganos, esses lamentos de três acordes, essa música que está no vento que bate há muito. E a parte que contextualiza isso tudo sou eu mesmo, em 2011, existindo. Não chego a achar importante manter-me de pé diante destes fenómenos rítmicos etéreos, simplesmente por nem sequer pensar nesse aspecto. Acho que a própria sinceridade ao tratar aquilo que você faz te localiza no tempo e espaço, e se você dialoga com forças mais antigas que a sua presença pode dar a entender que está ciente dessa conversa.

Algumas letras de “Toque Dela” revelam um grau de depuração poética inédito na sua obra. Quer falar-nos um pouco sobre o processo que o conduziu a textos de mais evidente disposição arquetípica, menor linearidade narrativa e sem notória dimensão política?
Venho, na hora de escrever, tentando desligar a parte de mim com senso crítico, com consciência direcionada. Misturar o momento de composição com o meu quotidiano, fazê-lo menos estanque da vida vivida. Tenho tentado me imbuir de uma falta de intenção que conduza à distração e que, por isso, consiga mergulhar fundo no meu inconsciente e trazer palavras e motivos que são mais reveladores da minha condição, mesmo para mim. Acredito que este método contém algo de extremamente político, no sentido mais pessoal de todos: o da política da transformação do indivíduo. Tento fazer isso não através de um ataque frontal às ideias e ao jeito de pensar das pessoas, mas de um jeito sinuoso, justificando as minhas melodias com ideias análogas a si e vice-versa. Para mim não há distinção entre o texto e a melodia. Tento estar distraído para uma enquanto faço a outra. Não escrevo sobre as coisas, escrevo com elas. Como a Maria Gabriela Llansol, que me acompanha.

Tão importante quanto as palavras que canta acaba por ser também a maneira de as cantar. A sua voz surge aqui como um instrumento musical que praticamente desfaz hierarquias. É uma opção consciente?
Acho que tem origem na descrença da palavra como signo de uma realidade objetiva. E também acho que é uma opção que se mistura com uma intenção que se mistura com aquilo que não se escolhe. Aquilo que é nosso. O canto é como a dança de alguém, como o timbre da voz, o olhar. É dessas coisas que moram antes da escolha.

Os seus discos a solo sublinham uma problemática interessante, pois revelam-no ainda mais permeável a colaborações e contribuições exteriores. Pode ainda o seu trabalho ser visto como uma manifestação colectiva?
Claro. Eu participo ativamente de tudo: da escolha das pessoas, das gravações, da capa. Mas sem o outro não existe nada, nem qualquer consideração. Fiz a música ‘Saudade’ para a Clara gravar [a pianista Clara Sverner, que em “Sou/Nós” interpretou dois temas a solo] por causa de uma música homónima que ela gravou da Chiquinha Gonzaga. Eu fiz aquela música para a Clara, por isso fui chamá-la para o disco. Acho que é um disco sobre as pessoas e o que causamos umas nas outras.

E em que medida o estabelecimento de uma nova parceria – penso concretamente no grupo Hurtmold – lhe permite desenvolver novas soluções estéticas?
É também uma aprendizagem não verbal. Repara como numa banda antiga os elementos se encaixam uns nos outros? No Hurtmold, no Los Hermanos, isso é trabalho de anos que se mistura com a vida. Aprendemos a tocar por causa do jeito do cara do lado tocar e ao fim de dez anos parece que a banda nasceu para tocar junta. Hoje já posso pensar numa composição que vá ao encontro do jeito do Hurtmold tocar. A informação que vem daí é matéria-prima para novas composições.

Por outro lado, há temas em “Toque Dela” em que toca todos os instrumentos. Talvez sejam as canções a ditá-lo, mas é importante para si ter a liberdade de determinar tudo o que acontece num tema seu?
Ainda venho lidando com as dificuldades e facilidades deste processo. Se você, por exemplo, faz o óbvio, ou seja, aquilo que a canção obviamente pede, é capaz de entrar num terreno de lugares-comuns. Muitas vezes o trabalho é uma busca pelo inusitado, por aquilo que não lhe soa natural. Essa busca é intelectual ou afetiva. Fazer música é um jogo de muitas peças. Sinto-me feliz por ter estado no Los Hermanos por tantos anos porque fazíamos de tudo e aprendemos muito uns com os outros. Mas, para mim, o mais importante tem sido poder estabelecer quando começar e quando parar. Poder controlar o tempo de cada processo. Porque as composições e a vontade de fazer um disco ou uma digressão são movimentos muito individuais. E muitas vezes contrariá-los é contrariar a própria razão de se fazer música.

O verso “Triste é viver só de solidão” traz à memória ‘Triste’, de Jobim, e “Eu não sou daqui, também marinheiro” lembra o ‘Marinheiro Só’ cantado por Caetano. É um desejo consciente de citar e envolver-se com a tradição ou manifesta antes uma técnica de associação livre?
Acho que é como aquilo do diálogo entre mim como compositor com o que é normativo, tradicional, estabelecido. É um contato que se dá na hora do silêncio, na ausência de intenções, por assim dizer. Não tinha tomado consciência dessas referências. São músicas que fazem parte do imaginário brasileiro. Estão aqui como estão os carros, as árvores, os amigos.

“Sou/Nós” influencia “Toque Dela” e o inverso também poderá ser considerado verdadeiro. Juntos, mais do que um estilo pessoal, sugerem um sistema de pensamento permeável a fenómenos extra-musicais?
Acho que a cabeça de um artista é sinestésica – a de todo o mundo, não é? Então não existe muito essa distinção na hora de apreender um fenómeno. Os fenómenos externos manifestam na gente um sentimento. É este sentimento que o artista toca. O método, o instrumento, são só detalhes oficiosos. Eles nos modificam também, mas o artista está antes disso.

As palavras mais repetidas em “Toque Dela” são: “amor”, “solidão”, “sol”, “noite”, “cidade”, “mar” e “despedida”. Perfilam de facto um ideário pessoal ou prefere que permaneçam imunes à estatística semântica?
Mais do que revelar um motivo acho que elas são pegadas de uma condição. No entanto, não está ainda claro para mim se, no jogo de imagem que propomos ao realizar uma obra, exclamamos o que somos ou o que queremos ser. Ou se as duas coisas podem ser apenas uma.

23 de julho de 2011

Sugestões de Verão

Renaud García-Fons “Méditerranées” (Enja, 2011)
Em “Breviário Mediterrânico”, Pedrag Matvejevic interrogou-se sobre o impulso em unificar aquilo cujas fronteiras “não se desenham já no espaço ou no tempo”. E, numa altura em que o Mediterrâneo é menos um mar do que uma dieta, o contrabaixista francês, com um plural no título que recusa a restrição contemplativa, abandona-se à viagem lembrando que cada ode marítima é uma canção de exílio.
Mário Lúcio “Kreol” (Lusafrica, 2011)
Um pouco como a ideia que Mário Lúcio tem do Homem, também a sua música se assemelha a muitas sem ser igual a nenhuma. E, em equivalente analogia, mais verdadeira se torna quanto menos se esforça para o parecer. Com Milton Nascimento, Pablo Milanés, Teresa Salgueiro ou Toumani Diabaté entre os convidados, esta travessia evoca a cultura crioula com que se pode sonhar em certas praias do Atlântico.
“La Habana Era Una Fiesta” (Vampisoul, 2011)
Esta antologia de emissões de rádio em Cuba, nas décadas de 40 e 50, divide-se entre versões do cancioneiro popular espanhol feitas por cubanos (Celia Cruz, Omara Portuondo ou Celeste Mendoza) e gravações de espanhóis em Havana (Conchita Piquer, Lola Flores ou Antonio Molina). O que salta à vista é não pertencerem bem a nenhum dos sítios e sim a um terceiro, perdido no mar: o da saudade.
“Fania Records 1964-1980: The Original Sound of Latin New York” (Strut, 2011)
Casa-mãe de uma luminosa sensibilidade pan-caribenha ampliada pelo prisma metropolitano da cidade que nunca dorme, a Fania acolheu cubanos, dominicanos, porto-riquenhos ou, crucialmente, nova-iorquinos (Barretto, Colón, etc), potenciando a experiência latino-americana e sonorizando a ‘verdade das ruas’ até ao ponto de a substituir. Um duplo CD que se ouve como uma crónica do (fim do) mundo.
Vinicius Cantuária & Bill Frisell “Lágrimas Mexicanas” (Naïve, 2011)
Mais do que sublinhar características comuns entre ritmos e melodias da América do Norte, Central ou do Sul, trata-se aqui de celebrar uma forma muito peculiar de as colocar do avesso. Cantuária e Frisell, como alfaiates que deixam costuras à vista, não aceitam diluir assinaturas pessoais em troca de uniformidade estética e fazem agora o que fez Arto Lindsay à bossa nova ou David Byrne à salsa.

16 de julho de 2011

“Cult Cargo: Salsa Boricua de Chicago” (Numero Group, 2011)

Para a história dos conflitos raciais de Chicago ficam os anos de 1919 e, após o assassínio de Martin Luther King, Jr, 1968. Porto-riquenhos na cidade recordarão antes 1966, quando, em Junho, a morte de Arcelis Cruz, às mãos da polícia, gerou um motim e culminou na imposição da lei marcial. Subsequentes reuniões entre Município e grupos comunitários decretaram medidas de combate à descriminação e fortaleceram politicamente associações como Latin American Defense Organization, Spanish Action Committee of Chicago, Caballeros de San Juan ou Congreso Puertorriqueño de Ayuda Mutua, fundado em 1951 por Carlos Ruiz. Este “Cult Cargo” é dedicado a si e às bandas que, sob a égide do congreso, lançou na editora Ebirac. Mas não surpreende que a sua história esteja por contar: afinal, possuía a música de Porto Rico os seus dignitários (com sede em Nova Iorque) e testemunhava Chicago o tumulto estético de Curtis Mayfield, Chi-Lites ou Earth, Wind & Fire. Só que breves instantes de ‘Plena Matrimonial’ (Ebirac All Stars) inspiram uma ideia que logo se confirma: esta estirpe salsera (fundindo son montuno, plena ou guaguancó) abominava o lugar-comum e mantinha-se orgulhosamente regional ainda que ambicionasse escapar ao isolamento geográfico. Comprovam-no La Justicia (numa densa versão do ‘Stone Flower’, de Jobim, que, de forma inesperada, ignora a gravada por Santana em “Caravanserai”), La Solución (que convida Mongo Santamaria, em ‘Mozambique’, a rever o ritmo criado por Pello el Afrokan), Under the Sun Orchestra (a evocar os Black Sabbath do tema homónimo), Típica Leal ’79 (em ‘Dónde estabas tú?’, perene nas vozes boricuas de Tito Rodríguez ou Héctor Lavoe) ou Juventud Típica ’78 (a lembrar o Ray Barretto psicadélico). Mas foi um tráfico criativo em migração forçada para os subterrâneos. Até hoje.

9 de julho de 2011

Omara Portuondo & Chucho Valdês “Omara & Chucho” (World Village, 2011)

Em Janeiro de 97, Omara Portuondo e Chucho Valdés gravaram um disco de duetos chamado “Desafios” – comovente decantação dos princípios do bolero até ao ponto da irredutibilidade, sublime ensaio sobre a poética amorosa na canção hispano-americana e elegante meditação sobre o provisório e o eterno – que, mal chegou às lojas, se viu irremediavelmente esmagado pelas toneladas de nostalgia derramadas por “Buena Vista Social Club”. De facto, provava-se irresistível para o grande público a simplificação ideológica de um projecto apresentado como um descongelamento cultural e assente no eufemístico discurso do ‘esquecimento’. A Omara, entre tantos outros, valeu uma ressurreição, mas não chegou para inverter a política norte-americana de embargo a Cuba. Um ano mais tarde chegavam ainda aos EUA os discos de Chucho na Blue Note através da EMI canadiana e uma ameaça de bomba obrigava a uma alteração de planos relativamente a um concerto em Miami de Valdés, Portuondo, Guillermo Rubalcaba e Compay Segundo, apontados por compatriotas expatriados como colaboradores do regime de Fidel. Catorze anos depois continua Omara com a vida complicada cada vez que chega a um aeroporto na Flórida, com manifestações de repúdio e jornalistas a perguntar, por exemplo, a razão de ter participado numa recente reunião da ALBA (atual Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América) cantando para Hugo Chávez e estendendo a mão a um beijo de Raúl Castro. A questão, de certa forma, ganha pertinência numa reflexão estética: porque a verdade é que muita da produção de Chucho e Omara na última década aparenta derivar da renúncia ao exílio, sugerindo, no que isso implica de distanciamento do mundo, depender artisticamente da sua permanência em Havana. Ouvindo esta sua nova gravação será inegável concluir, também, que quanto mais longe da realidade dos outros se situam, melhor ficam.
“Omara & Chucho” abre com ‘Noche Cubana’ e ‘Llanto de Luna’, que em 59 Omara incluiu no seu primeiro LP. Alternar entre versões separadas por mais de meio século é como assistir a um interminável eclipse. Da voz desapareceu o brilho e a radiância juvenil, o controlo da respiração no prolongamento das notas, a precisão nas passagens de escala ou, inevitavelmente, a gaiatice de quem se julga imune à força das letras que canta. Por outro lado, ganhou-se tudo o resto. Se o arranjo original de ‘Llanto de Luna’ imitava o “West Side Story” e Omara, soberba, ridicularizava o sentimentalismo de uma frase como “llaga de amor que no puede sanar/ si me faltas tú”, agora, com um prelúdio de Chucho que cita a ‘Sonata ao Luar’, de Beethoven, a melodia é lançada ao mar e quase se afunda, com a grave voz da protagonista guiada pelas ondas, fatalmente ferida pela própria vida. A escolha dos temas, de César Portillo de la Luz e Julio Gutiérrez, inspira ainda a ideia, sustentada pelo alinhamento de ‘Y Decidete Mi Amor’ e ‘Nuestra Cobardia’, de José Antonio Méndez, ou ‘Recordaré Tu Boca’, de Tania Castellanos, que este se trata de um disco consagrado ao fílin (hispanização do inglês feeling), a corrente desenvolvida nos anos 30 e 40 enquanto reacção ao excesso de melodrama na música latina. É, nessa medida, uma ilustração da biografia de Omara, que com Elena Burke ou Moraima Secada foi uma das estrelas do movimento. Mas o seu triunfo maior reside na transcendência de qualquer género e na sujeição do repertório à experiência dos seus intérpretes. Poderá ser graças a Chucho – contido quando a palavra o exige e arrebatado quando dela se solta – que Omara gravou o seu mais belo disco, ou será – porque de uma branda entoação na garganta desponta a sombra do blues e de um vago rumor se produz uma elegia – o inverso verdadeiro. Ou, então, tudo não passa de um pretexto para dois velhos amigos dizerem que da sua dor só eles sabem; das alegrias também.

2 de julho de 2011

"Nigeria 70: Sweet Times" (Strut, 2011)

Numa edição de 1992 da Whole Earth Review, Brian Eno escrevia que a música nigeriana “minimizava harmonia e melodia em prol de combinações rítmicas extremamente ricas e complexas”, o que a tornava “extraordinariamente física, sexual e focada no movimento”, ao contrário, por exemplo, da música clássica europeia, que raramente se concentrou artisticamente no corpo (ipse dixit). O artigo, recheado daquelas intenções de que está o inferno cheio, deixou há muito de fazer sentido mas serve ainda para ilustrar o ponto de que a recepção crítica ocidental à produção africana só recentemente deixou de depender em exclusivo da experiência da alteridade. Para tal, ao longo da última década, contribuíram uma série de edições e a progressiva tomada de consciência de que o contacto com Fela Kuti ou King Sunny Adé marcava apenas a entrada na secretaria de um colossal edifício de música popular, no qual, para referir títulos recentes, tão depressa se tropeçou em material digno de figurar em futuras erratas de enciclopédias de rock psicadélico (“The World Ends”) como se escorregou em oleosos nacos de disco sound com mais gordura para queimar que os seus congéneres e putativos protótipos norte-americanos (“Lagos Disco Inferno”). Oportunamente, “Sweet Times” prova que, apesar de tanta investigação, o material inédito (só ‘Ire’, de Don Isaac Ezekiel, em “Afro Baby”, havia sido previamente antologiado) pode ainda igualar o já publicado. Confirmam-no Admiral Dele Abiodun, que em ‘It's Time for Juju Music’ revela uma visão cósmica do highlife, Tunde Mabadu, cujo ‘Viva Disco’ sugere a investida no juju que os irmãos Mizell deveriam ter feito, ou Eji Oyewole, capaz de, com ‘Unity in Africa’, insinuar que Eno, lá está, pode ter levado os Talking Heads de ‘Fela’s Riff’ a bater à porta errada.

1 de julho de 2011

Discos da minha vida (Jazz.pt)



Rúbrica "Discos da Minha Vida": de múltiplas formas (coleccionador, lojista, promotor de concertos, distribuidor, editor, o que quiserem), João Prado Santos tem nos últimos 15 anos vivido dos – e para os – discos. Paralelamente, primeiro em obscuras publicações, depois na revista Op e desde 2009 no semanário Expresso, dedicou-se à crítica. Foi-lhe manifestamente impossível escolher, como lhe pedimos, os 30 discos de jazz 'da sua vida'. Por isso, fez batota: elaborou quatro listas distintas e sorteou uma. Calhou-nos a dos pianistas, por ordem alfabética do nome próprio, com outra finta às regras na inclusão da caixa* de Art Tatum.

Al Haig “Trio” (Esoteric, 1954)
Andrew Hill “From California with Love” (Artists House, 1979)
Art Tatum “Complete Pablo Solo Masterpieces 1953-1955” (Pablo, 1991)
Barry Harris “Listen to Barry Harris” (Riverside, 1961)
Bill Evans “Waltz for Debby” (Riverside, 1961)
Cecil Taylor “Looking Ahead” (Contemporary, 1959)
Don Friedman “A Day in the City” (Riverside, 1961)
Duke Jordan “Flight to Jordan” (Blue Note, 1961)
Duke Pearson “Right Touch” (Blue Note, 1968)
Earl Hines “Spontaneous Explorations” (Stateside, 1964)
Elmo Hope “Quintet” (Blue Note, 1954)
Enrique Villegas “Introducing” (Columbia, 1955)
Eubie Blake “Rags to Classics” (Eubie Blake Music, 1972)
Hampton Hawes “Vol. 1: The Trio” (Contemporary, 1955)
Herbie Hancock “Crossings” (Warner Bros., 1971)
Horace Tapscott “Songs of the Unsung” (Interplay, 1978)
Jaky Byard “Parisian Solos” (Futura Swing, 1971)
Martial Solal “Nothing but Piano” (MPS, 1976)
Paul Bley “Alone, Again” (Improvising Artists Inc., 1975)
Phineas Newborn Jr. “Here is Phineas” (Atlantic, 1956)
Ran Blake “Breakthru” (Improvising Artists Inc., 1975)
Randy Weston “African Rhythms” (Le Chant du Monde, 1975)
Roland Hanna “Sir Elf” (Choice, 1973)
Sonny Clark “Cool Struttin'” (Blue Note, 1958)
Stanley Cowell “Blues for the Viet Cong” (Arista, 1977)
Steve Kuhn “Ecstasy” (ECM, 1975)
Thelonious Monk “Alone in San Francisco” (Riverside, 1959)
Walter Davis Jr. “Davis Cup” (Blue Note, 1960)
Walter Norris “Synchronicity” (Enja, 1978)
Wynton Kelly “Kelly Blue” (Riverside, 1959)

* No contexto da publicação da lista de 30 "discos da minha vida" que a Jazz.pt teve a cortesia de me pedir, esta caixa, que reúne as sessões a solo realizadas por Art Tatum com Norman Granz pouco antes de falecer, possui um caráter absolutamente excepcional. Não só não tem companhia na sua categoria - a das antologias recheadas de múltiplos discos - como, por sinal, se tratou do único lançamento em CD que aqui incluí. Todos os outros títulos a que fiz referência, nas suas edições originais, possuo na minha colecção em LP (o meu meio de reprodução fonográfica de eleição). E, de certa forma, este desvio à regra - associado a essoutro de, no caso, me limitar a escolher entre gravações de pianistas - permite-me que refira mais um par de condicionamentos de que tive perfeita consciência quando, a custo, decidi tornar efetiva uma lista destas: evitar a repetição de artistas; e restringir-me a álbuns, i.e., à era do longa-duração. Art Tatum (um pouco à semelhança de Eubie Blake) adquire assim um último estatuto simbólico: o de elo de ligação para as épocas dos pianistas de ragtime, stride ou boogie-woogie que tanto admiro, mas que tiveram essencialmente obra gravada em 78 rpm. A lista final - porque estas coisas são, de facto, e por natureza, muito volúveis - servirá, quanto muito, e num enquadramento em tudo específico ao período da sua elaboração, para representar um certo estado de espírito e um determinado conjunto de circunstâncias (preocupei-me, por exemplo, em conferir alguma variedade estilística e narrativa à lista; e de dar alguma primazia ao prazer que obtive sempre que tornei a estes discos; ou seja, é óbvio que não vai ser pela audição de "Crossings" que se terá acesso ao génio de Hancock ao piano, nem tão pouco através de "From California with Love", mais do que com qualquer um dos seus discos na Blue Note, se compreenderá o mais revolucionário em Hill). Enfim, perdoem-me a verbosidade e, ao mesmo tempo, alguma vacuidade, mas achei importante esclarecer que nem de perto, nem de longe se esgotam aqui as minhas preferências. Já agora, se pressionado, é possível que trocasse meia lista pelo Herbie Nichols dos dois volumes de "The Prophetic...".