28 de março de 2020

Berio: Coro (BIS, 2020)

Com “Folk Songs” (1964), Luciano Berio havia já encostado o ouvido ao chão. E, entre muitas vozes mais, escutou o seu próprio canto, claro, antes de se deixar possuir por esse seu palimpséstico delírio e de se pôr a redigir por cima de escritos arménios, azerbaijanos, sicilianos ou sardenhos até praticamente se perderem de vista os caracteres originais. Mais tarde, em “Sinfonia” (1968), para preservar a integridade física de uma das suas mais ameaçadas estruturas, ou, quiçá, para a fazer cair de vez, dedicou-se à conservação e restauro do cânone ocidental, enxertando a prática contemporânea com Bach e Berg, Brahms e Boulez ou Stravinsky e Stockhausen, embora a sua ação lembrasse mais a de um perverso falsário que na reprodução de uma obra de arte não resistisse a acrescentar elementos espúrios. Agora, em meados da década de 70, desejava unir esses dois ciclos distintos: de pegar em algo que parecesse ter começado com a criação do mundo, numa ponta, e em qualquer coisa vinda de si, noutra, e de lhe dar um valente nó. Sabe-se que no gira-discos tinha um LP com gravações de campo do etnomusicólogo Simha Arom e que, no fundo, se sentia como se estivesse a reaprender contraponto com o povo Banda, uma minoria da República Centro-Africana. E provavelmente tinha na mesa-de-cabeceira uma antologia de Borges, daquelas em que os narradores crêem “em infinitas séries de tempos” e “numa rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos”. Conforme veio a admitir, em entrevista, tinha em mente uma espécie de assembleia, uma convocação das mais variadas gentes, “cada qual com a sua própria história, com os seus diferentes amores e com os seus lares destruídos.” De facto, nos anos de chumbo, assistia ao noticiário, lia as manchetes e, entre golpes de Estado, conflitos armados, atentados e ações de guerrilha, via-se rodeado por cadáveres. Não admira que a extravagante algaraviada de “Coro” se assemelhe à que hoje rodeia o coronavírus: diversas fontes a quererem falar numa voz unida, quando todo o ruído que produzem apenas serve para sublinhar o muito que as separa. É essa a sua força. É essa a sua fraqueza.

À janela [Agenda virtual]

Em entrevista, há uns bons 25 anos, inquirido acerca dos seus hábitos de audição caseiros, Cecil Taylor dizia assim: “Escuto muitas coisas diferentes. Hoje, por exemplo, ouvi música clássica chinesa, cantos islâmicos e a Orquestra de Duke Ellington, por volta de 1945 – um dos temas era absolutamente incrível. Ouvi a Victoria de Los Ángeles no ‘Dido e Eneias’, de Purcell, e, depois, o Gary Graffman a tocar o primeiro andamento do ‘Concerto para Piano Nº 1’, de Brahms – é qualquer coisa, deixa-me que te diga. A seguir, fui ouvir a Leontyne Price a cantar a cena final de ‘Salomé’, de Richard Strauss – bem… foi, assim… wheeew. E, claro, ouço diariamente qualquer coisa de Ligeti – hoje foi ‘Ramificações’, outra peça coral qualquer e ‘Atmosferas’. Também ouço todos os dias Marvin Gaye, como é óbvio. Ainda pus no gira-discos Sarah Vaughan e, por fim, Xenakis, uma peça orquestral – esse sacana é demais!” Tudo isto, pasme-se, sem que tivesse sido decretado o estado de emergência, sem que tivesse a sua subsistência, para não dizer, já, a sua própria sobrevivência, ameaçada e, claro, sem acesso à internet, o que não é menos espantoso. Imagine-se o que faria com tudo o que nos é agora subitamente colocado à disposição: talvez começasse pela vizinhança, dando um salto à página de Facebook de Fred Hersch [na foto], por exemplo, que à nossa hora do chá tem dado pequenos recitais aos seus seguidores; aí, talvez tropeçasse em #fightcoronaseries, em redor da qual se têm vindo a agremiar músicos de todo o mundo, aproveitando para amaldiçoar pela primeira vez o seu fornecedor de banda larga; nesse domínio é provável que recebesse uma chamada de atenção para a “Spring 2020 Jazz Series”, da Firehouse 12, em transmissão exclusiva no canal de YouTube da sala (em abril, estão agendadas atuações de Allison Miller e Carmen Staaf, Daniel Levin e Mat Maneri, de Lioness e do sexteto de Allen Lowe); mas, conhecendo os seus gostos, seria muitíssimo provável que, hoje, despedindo-se de Hersch, se ligasse ao site da Ópera de Viena para apanhar a retransmissão gratuita de “O Crepúsculo dos Deuses”, de Wagner, e que, amanhã, à meia-noite, acedesse ao da 92|Y para ver e ouvir Anthony de Mare a tocar Stephen Sondheim ao vivo; ao longo da semana, assistiria aos Nightly Met Opera Streams e perder-se-ia nos arquivos escancarados do Wigmore Hall, da Ópera de Berlim e da Filarmónica de Berlim ou na plataforma Marquee TV; além de que, no Twitter ou Instagram, instrumentistas como Yo-Yo Ma, Gautier Capuçon, Igor Levit ou Alisa Weilerstein descobriram o televangelista que tinham em si – raios partam, que isto está mais para o Sol e Dó do que para a solidão! Apesar das indicações em contrário, é o que tenho sentido nos últimos dias, sentado ao computador, a abrir janelas atrás de janelas até me vir à memória aquela canção do Roberto – ‘À Janela’, precisamente – em que ele cantava “Quantas vezes eu pensei sair de casa/ Mas eu desisti/ Pois, eu sei, lá fora eu não teria/ O que eu tenho agora aqui” e me tentar convencer de que o que ele diz é verdade.

21 de março de 2020

Schoenberg: Violin Concerto; Verklärte Nacht (Harmonia Mundi, 2020)

Certo. Os tempos estão mais para Manuel Bandeira: “Noite morta// Junto ao poste de iluminação/ Os sapos engolem mosquitos// Ninguém passa na estrada/ Nem um bêbado.” Se prestarmos bem atenção, claro, o caso muda de figura, pois até numa rua deserta espreitam as “Sombras [dos] que passaram/ [Dos] que ainda vivem e [dos] que morreram.” Duas delas, não inteiramente sós, foram protagonistas de “A Noite Transfigurada” (1899): numa noite de intenso luar, passeando por um bosque nu, uma mulher, grávida, confessa ao companheiro carregar o fruto de outro no seu ventre; perdoando-a facilmente, ele pede-lhe que veja como o universo em seu redor cintila, como tudo refulge, como o calor profundo que deles irradia vai transfigurar essa criança, de filho ilegítimo de um estranho a filho legítimo dos dois. Assim rezava o poema de Richard Dehmel, à volta do qual Schoenberg teceu uma finíssima teia em que se diria querer apanhar um outro casal: Wagner e Brahms, que desejava completamente purgar das maleitas do fin de siècle. Conforme viria a escrever, anos depois, a tonalidade era uma vítima de “incesto” – era “sentimental”, “cosmopolita”, “consanguínea”, “efeminada”, “hermafrodita”, cheia de acordes “vira-casacas” que se adaptavam a qualquer situação. E como é difícil pegar neste peça sem pensar neste triste vocabulário, sem proceder à autópsia de um organismo consumido pelo vírus da degeneração, que é, mais ou menos, como Schoenberg via o que imediatamente o precedeu. Nas infalíveis mãos de Faust, na sua versão para sexteto (em cuja interpretação, por sinal, figura, ao violoncelo, Jean-Guihen Queyras, que, em 2014, com o Ensemble Resonanz, participou no último registo digno de nota da peça), e tal o seu à-vontade neste material, o drama do casal é não só inteiramente compreensível como eminentemente credível: o que Schoenberg apresenta como problema (afinal, o bastardo da tonalidade era ele) é aqui visto como uma solução. O mesmo se aplica ao “Concerto para Violino” (1936), com a alemã a deixar-se arrebatar pelas excêntricas órbitas que o compositor desenhou em torno do eixo fixo da razão – em noites mortas, não há melhores.

Rossi: La Lyra d’Orfeo – Arpa Davidica (Erato, 2019)

Em “Mostro con l’ali nere”, toda ela contrária à ordem regular da natureza, com serpentes em vez de cabelos, gelada ao toque e escura como o breu, uma agoirenta criatura levanta voo do inferno, pronta a ofuscar o esplendor do céu. Calma, que é do vírus do ciúme que esta cantata de Luigi Rossi trata. No contexto da sua oportuníssima produção, aliás, apenas um dos muitos mal-estares suscetíveis de cura pela música. Observe-se com atenção “Al soave spirar”, por exemplo: numa embarcação, de regresso a casa, e após uma longa travessia, o protagonista vê-se perante um saque, cercado por amotinados marinheiros que a avidez do lucro cegou; desesperado, enraivecido, suplicante, lamentando tamanho infortúnio, pede que o acudam e, depois, que o vinguem, até que, a custo, recupera a dignidade, faz a apologia da perseverança e, cantando, se lança ao mar e para a morte; nesse derradeiro momento, movido pela compaixão, um golfinho condu-lo no seu dorso, são e salvo, até à costa. Como é óbvio, Rossi apresentava uma variação sobre a lenda grega de Aríon em ligação direta à moral da história: se sons tão harmoniosos conseguem fazer isto, não há realmente limite às desgraças que uma bela melodia pode mitigar. Esqueceu-se, só, de dizer que Aríon empunhava uma lira, o que, neste enquadramento, não é estritamente necessário: aqui, de forma a encadear estas canções (21 delas em primeira gravação), Pluhar [na foto] procede à invocação de Orfeu e de David.

Basta pensar num, com os argonautas, a sobrepor a sua voz à das sereias (“Navegar é preciso/ Viver não é preciso”, quase se ouve), e noutro, dedilhando uma harpa, a aliviar o sofrimento de Saul (no caso, é o ‘Hallelujah’, de Cohen, que logo vem à memória), para se perceber que – placebo, profilático ou paliativo – o disco dá resposta a uma crise. E, girando, como tantos, na órbita do Cardeal Jules Mazarin, depois do Conclave de 1644, a verdade é que a principal preocupação de Rossi seria afastar-se dos Estados Papais e procurar abrigo na corte francesa – hoje, é inconcebível que as suas reflexões sobre amor sagrado e profano surgissem condicionadas pela rivalidade franco-habsburguiana. Mas, não fosse a sua capacidade em transpor esses contraditórios impulsos do campo dos afetos para o da política – muita da sua obra obedece à lógica da guerra dos sexos – e sabe-se lá se teria vindo a ser tão apreciado por Luís XIV! Seja como for, o ponto não é esse. O que interessa é o que se escuta em “Se dolente e flebil cetra”: que se lhe “parte o coração”, e não se lhe “calam os ais”, se o cantar da sua cítara não inspirar a piedade de que tanto precisa. Ora, isto é fado.

14 de março de 2020

Tim Berne's Snakeoil “The Fantastic Mrs. 10” (Intakt, 2020)

Há coisa de 20 anos, numa esplanada de Lucerna, conversava com Stefan Winter acerca de Tim Berne e da dificuldade em manter músicos destes presos a uma estrutura editorial: “Ah, o Tim é um perfeito rebelde”, dizia-me. “Tocava em alguns dos álbuns que eu produzia na JMT, gravava para a CBS, mas falavas com ele e percebias que se tratava de alguém que gostava de manter as opções em aberto. Extremamente focado, mas muito livre, também. Entre 1989 e 1995, por aí, trabalhámos mais um com o outro e ainda me acompanhou na transição para a Winter & Winter. Ele tinha objetivos bem traçados. O problema é que se aborrecia depressa e não era nada fácil seguir-lhe o ritmo.” Pois, aos 65 anos, Berne muda-se de armas e bagagens da ECM para a Intakt.  No contexto dos Snakeoil, mantendo-se o núcleo duro de Matt Mitchell (piano), Oscar Noriega (clarinete baixo) e Ches Smith (bateria) [na foto], não é, no entanto, a única alteração digna de nota, ou sequer a mais importante: aqui, o guitarrista Marc Ducret substitui Ryan Ferreira. De repente, de facto, até parece que voltámos aos tempos da JMT, quando Berne e Ducret lançavam “Pace Yourself” (1991) com os Caos Totale, serviam de catalisador à música de Julius Hemphill em “Diminutive Mysteries” (1993) e com os Bloodcount mudavam de sítio as partes do corpo do jazz moderno nos três seminais volumes de “The Paris Concert” (1995) – o seu impacto foi devastador, mas, como um tema deles dizia, ‘It Could Have Been a Lot Worse’.

Agora, incluindo em ‘Dear Friend’, de Hemphill, a intenção de Berne ao recorrer a Ducret era a de deitar areia na engrenagem: “[Introduzir] uma personagem nova põe toda a gente em sentido”, confessa, em notas de apresentação. Sim, realmente: basta pensar no Negan de “The Walking Dead” ou no Ramsay Bolton de “A Guerra dos Tronos”. Tudo isto, porque, como dizia Henry Hill (Ray Liotta) de James Conway (Robert De Niro), em “Tudo Bons Rapazes”, estamos com certeza a lidar com aquele “tipo de pessoa que nos filmes se põe a torcer pelo mau da fita”. Neste “The Fantastic Mrs. 10” não há uma linha reta – aliás, ouvindo-o, imaginam-se os músicos dobrados sobre si mesmos a dar expressão àquele paradoxo que diz que “um atalho é sempre a distância mais longa entre dois pontos”. Em partes iguais repressivo e catártico, sério, grave, mas capaz de falar na língua das chamas, de âmago inviolável mas ímpio, o disco devora contradições. A maior? Mostrar o que faz um apóstata quando se vê rodeado de apóstolos. Como escreveu Richard Howard, num poema: “[Aos 65] pára de esperar/ Vira-te para trás/ E […] ficarás espantado ao entender que a memória é infinita/ A vida, longa/ E tu/ Tu, afinal, és imortal.” Para banha da cobra não está mau.