29 de junho de 2019

“Brazil USA 70” (Soul Jazz, 2019)

Possui como subtítulo “Brazilian Music in the USA in the 1970s”, mas, apesar de tudo, prova-se bem mais flexível. Afinal, abre com ‘Samba de Flora’, um tema extraído a um álbum de Airto Moreira lançado em 1989 pela Montuno. Depois, claro, observando com atenção o alinhamento, dá-se, ali, com um ‘Batucada’, do Brasil ’66, de Sérgio Mendes, que foi incluído em “Look Around” (A&M, 1968) e cujo português fonético nas vozes de Karen Philipp e Lani Hall até parece entrar em contradição com o que agora se pretende; com ‘Bahia Soul’, de Luiz Bonfá, que sob orientação de Eumir Deodato foi nesse mesmo ano colocado no mercado pela Dot em “Black Orpheus Impressions”; com um par de temas de “Courage” (A&M, 1969), de Milton Nascimento, de novo com Deodato ao comando das operações; com ‘Consolação’, do Tamba 4 de Luiz Eça, Rubens Ohana, Bebeto Castilho e Dório Ferreira, na versão de “We and the Sea” (A&M, 1969); e ainda com Flora Purim à frente da banda de Duke Pearson (aberta a Airto, Bebeto e Dório) em ‘Sandália Dela’, gravado em 1969 para a Blue Note a tempo de figurar em “How Insensitive”. 

São muitas exceções à regra. E é como se a Soul Jazz, nada discretamente, quisesse trazer à ideia uma evidência de há muito: que o conjunto de achados rítmicos, melódicos e harmónicos trazidos para norte por este desestabilizador batalhão de expatriados foi a maior faísca que ocorreu na ligação do jazz à corrente elétrica, pervertendo-o. Aqui, além do que fazem Flora, Airto, Stanley Clarke e George Duke em ‘Moon Dreams’ ou Airto e Hermeto Pascoal [na foto, com Flora] em ‘Andei’, provam-no sobretudo o João Donato de ‘Almas Irmãs’ (com Deodato e Óscar Castro-Neves no papel de tradutor face a Bud Shank, Conte Candoli, Jimmy Cleveland ou Don Menza), o Moacir Santos de ‘Kathy’ (cuja ficha técnica juntava barras da estirpe de Jerome Richardson, Harvey Mason, Lee Ritenour ou Benny Powell) e o Dom Um Romão de ‘Braun-Blek-Blu’ (numa sessão que colocou Clarke, Joe Beck, Lloyd McNeil e Sivuca sob o mesmo teto). Gente que se pôs a palmilhar uma terra estranha à cata do que mais lhe faltava em casa: liberdade e reconhecimento.

Agenda: Jazz im Goethe-Garten 2019


O Jazz im Goethe-Garten deste ano terminará com uma reviravolta inesperada quando o quarteto Philm, de Philipp Gropper, perguntar: ‘Thinking of the Future (Are You Privileged)?’ Ao final da tarde, numa das colinas douradas de Lisboa, perante uma plateia preocupada com as alternativas veganas à bratwurst e com a escassez de brezel na barraca de comes e bebes, e profundamente dividida entre a Weihenstephaner e a Erdinger, a resposta será afirmativa. Seja como for, a cabriolice ideológica andará a par da estética: protagonistas de “Consequences”, acabado de lançar pela WhyPlayJazz, os Philm dão aos estilos musicais os mesmos nós que os seus compatriotas padeiros dão ao pão.

Não estão sós. Nove dias antes, a 3 de julho, e sempre às 19h, quando o festival arrancar ao som de Cat in a Bag será no padroeiro desta estirpe de contorcionistas, John Zorn, que se pensará. Verdade seja dita, como Zorn, no passado, também o quarteto português recorreu a quadros de Francis Bacon (o Houdini da pintura a óleo) de forma a ilustrar convenientemente as capas do seu tríptico inicial de álbuns. Só lhes falta citar Bataille, como Zorn, em “Leng Tch’e”, dos Naked City, um bom ponto de comparação para o que fazem: “O que me enchia de angústia mas, ao mesmo tempo, me libertava, eram estes perfeitos opostos que confrontavam horror extremo e êxtase divino”, lia-se.

Semelhantes referências terá o trio de Dave Gisler [na foto], cujo “Rabbits on the Run” traz não só à memória uma frase de Bataille – “o que está sempre em questão é substituir o isolamento do ser, a sua descontinuidade, por um sentimento de continuidade profunda” – como, também, “Strange Meeting”, um disco de correligionários de Zorn editado pela Antilles em 1987 (e de autoria tripartida entre Bill Frisell, Melvin Gibbs e Ronald Shannon Jackson). É normal: o jazz europeu está sempre a tentar devorar a cauda do jazz americano. Dia 5, por exemplo, os Synesthetic 4 recordarão o que Miles Davis e Easy Mo Bee fizeram em ‘High Speed Chase’. E no dia 11 é provável que Albert Cirera e João Lencastre toquem uma outra ‘High Speed Chase’ – gravada em quinteto no novo “Parallel Realities” (que foi como Jack DeJohnette chamou a um disco seu de 1990). Explica o baterista, a propósito, que é como ter “diferentes mundos musicais a darem-se em simultâneo”, “faces complementares de uma mesma – múltipla, mas única – realidade”, acrescentaria o Nietzsche de “Eterno Retorno”.

É um compromisso comum a esta gente (seja ela portuguesa, suíça, austríaca, espanhola ou alemã) e não se vislumbra desígnio mais europeísta, até pelas mais variadas ausências que essa predileção obriga a sincronizar – como a de praticantes cujo vínculo com o jazz não pareça ter sido contraído tão indevidamente, ainda que de boa-fé. Talvez por isso, pela visão quimérica que o jazz promove no imaginário europeu, suba dia 10 ao palco o italiano Ghost Trio invocando espectros de Ayler e Beckett. Contínuos desvios ao cânone que lembram uma frase ouvida em “Europa”, de Lars von Trier: “Queres acordar… Queres libertar-te da imagem da Europa. Mas não é possível.” Não custa tentar.

22 de junho de 2019

Dexter Gordon “At The Subway Club, 1973” (Elemental, 2019)


Sabia-se do apreço de Dexter Gordon pelas palavras – para o confirmar, preste-se atenção ao modo em que nos seus álbuns ao vivo, como aqui, completava com versos inteiros os títulos das canções à medida que as ia apresentando. Mas receava-se que o mundo da literatura lhe estivesse vedado – isto, se excetuarmos as linhas de “Pela Estrada Fora” em que as personagens de Kerouac imitavam as síncopes convulsas de Gordon e Wardell Gray em ‘The Hunt’. Assim, em boa hora foi dado ao prelo “Sophisticated Giant: The Life and Legacy of Dexter Gordon”, completado pela sua viúva, Maxine, mas derivado em grande parte dos cadernos em que foi anotando apontamentos biográficos a partir de 1987, logo após ter sido nomeado ao Óscar de Melhor Ator pelo seu papel em “À Volta da Meia-Noite”. Vivia então em Cuernavaca, no México, onde viria a comemorar um aniversário especial, com este brinde: “Se me dissessem que iria estar presente na festa dos meus 65 anos, não acreditaria. É um milagre. E deve-se ao jazz. Tantos amigos, tantos grandes músicos morreram tão jovens. Mas permanecem comigo… Só peço que ninguém os esqueça.”

A falar, parecia soltar as sílabas com cuidado para que não lhe ferissem a garganta, como se lhe viessem à boca para envenenar a unidade linguística, amordaçadas pelo enfisema, sufocadas pelo cancro da laringe que o viria a matar. Era mesmo assim. “Uma vida dedicada à improvisação não pode seguir as regras de mais ninguém. O que acarreta uma série de problemas, se tivermos em conta o que um observador comum qualificaria como comportamento aceitável numa sociedade que não compreende bem o que é a arte, nem sabe que sem música não há nada”, escreveu. Não admira, por isso, que, a tocar, a partir de certa altura, não ocultasse as “deceções consigo próprio, os triunfos, as derrotas e as desonestidades”, por tão claramente possuir o “desejo de ser, de uma ou de outra forma, poeta da vida”. Isto não foi Dexter que escreveu – foi Malcolm Lowry, uns anos antes, mas igualmente a partir de Cuernavaca, quando tentava explicar por carta a relação com a música de um personagem de “Debaixo do Vulcão” ao seu editor. É o que se sente ao escutar estas gravações em Colónia (1973), Haia (1971) e Estugarda (1965), do período em que, como dizia, Dexter veio uma noite à Europa para tocar no Ronnie Scott’s e quando reparou tinham passado 14 anos. Sempre a espalhar milagres pelo palco, só para ver se sobrevivia.

Lekeu: Music For Violin, Cello And Piano (Brilliant, 2019)

Em 1913, com o lançamento do primeiro volume de “Em Busca do Tempo Perdido”, imagina-se a frustração dos empregados de balcão nas mais prestigiadas casas de partituras de Paris: “A ‘Sonata de Venteuil’? Desconheço.” Bom, senão isso, qualquer coisa assim do género, pois, na verdade, consciente, quiçá, de que uma dieta à base de madalenas teria um efeito limitado no hipocampo dos seus leitores, Marcel Proust tinha-a efetivamente inventado. Pior, na altura, só Fritz Kreisler, que fazia passar originais seus por peças perdidas de Couperin, Tartini ou Boccherini – ou, 80 anos mais tarde, Zbigniew Preisner e Krzysztof Kieslowski, que, em reação à música de “A Dupla Vida de Véronique”, puseram plateias do mundo inteiro a esquadrinhar lojas de discos à cata de um tal Van Den Budenmayer. O impulso será mais ou menos o mesmo – afinal, quantas vezes não damos na arte por uma plenitude de significados ou por uma completude de variáveis naquilo em que vicariamente largamos o peso dos nossos receios e convicções? Em Proust era assim, e essa sonata imaginária permitia a seguinte reflexão: “Pereceremos, mas faremos reféns dessas divinas cativas [frases musicais]. E com elas a morte será menos amarga, menos inglória, menos provável, talvez.”

Isto, claro, por tornar espiritualmente real aquilo que nenhuma faculdade intelectual poderá admitir: a eternidade. Muito precocemente, aos vinte e poucos, nada mais que essa total aversão ao efémero intimava Guillaume Lekeu (1870-1894) quando compôs estas figuras de retórica cuja inegável expressividade deriva de procedimentos algo fantasiosos e cuja unidade temática, diz agora Bruno Monteiro [na foto], cria uma “espécie de estrutura psicológica constante”. Por isso, há quem insinue que Proust nele se inspirou ao descrever uma obra que “oculta o mistério da sua incubação” mas que possibilita a quem a escuta reconhecer “secreta, sussurrante e fragmentariamente” a música que mais ama. Lekeu não teve tempo para ler Proust, mas leu Mallarmé, que sugeriu que há “estados de alma” que apenas atingimos ao “decifrar totalmente um objeto” – isto é, quando a nossa mediação não coarta o impacto das suas ambiguidades. Lembra este belíssimo disco que foi exatamente isso que Lekeu tentou fazer à música de câmara.

15 de junho de 2019

Aki Takase "Hokusai" (Intakt, 2019)

Nas notas de apresentação deste disco, a certa altura, Aki Takase explica que, para si, a “música é como uma cor”: o azul-claro, por exemplo, associa à delicadeza. E, aqui, revela que se sente invadida por azul ao tocar uma peça como ‘Silent Landscape’ (porventura a coisa mais bela pela qual se dá ao escutar o punhado de álbuns que gravou a solo). De repente, parece que estamos outra vez em 1993, com a Juliette Binoche de “Três Cores: Azul” e o Derek Jarman de “Blue” a veicular uma arquitetura dos sentidos tão pitoresca e monocromática quanto a de Chefchaouen e Jodhpur e com Aki a lançar “Blue Monk” – cada qual exorcizando o azul que Caetano chamou de “nome mais belo do medo”. Agora, à boleia do Azul da Prússia em xilogravuras de Katsushika Hokusai, dir-se-ia que se busca antes o do consolo. Virá certamente com a idade. E, no caso, sem qualquer fatalismo, trazendo à memória aquela espécie de pós-escrito com que Hokusai finalizava a série “100 Vistas do Monte Fuji”, em 1834: “Desde pequeno que tenho a mania de rabiscar a forma de tudo e mais alguma coisa. Aos 50 tinha já uma série de desenhos publicados. Contudo, nada do que fiz até aos 70 deve ser levado em consideração. Lá para os 75, no entanto, serei capaz de reproduzir os padrões da natureza – em animais, plantas, árvores, pássaros, peixes e insetos – e aos 80 e picos já se hão-de notar progressos. Aos 90 estarei pronto a atingir o âmago da criação e aos 100 é provável que chegue ao sublime. Depois, tudo o que fizer – cada ponto, cada linha – saltará animadamente da tela.”

Takase gravou este “Hokusai” aos 70, mas, ouvindo com atenção, é muito possível que tenha antecipado ao piano tanto daquilo que espera vir ainda a conseguir em vida: clarificar um crepúsculo contínuo em que as constelações se cruzam com uma incoerência que é só delas e que chega não se sabe bem de onde – lembrando que “o dia morrendo em noite é um mistério”, como dizia Clarice Lispector. Ao invés, Takase fala em “sonhar acordada”. Citando Murakami (em cujo clube de jazz, enquanto jovem, Aki tocou): “Sonho – por vezes é a única coisa certa a fazer.” É isso: um sonho azul.