David Sinclair, um geneticista dedicado à ciência do
prolongamento da vida, recorre frequentemente a uma metáfora fonográfica:
envelhecemos, diz, porque o nosso ADN é digital, enquanto a expressão dos
nossos genes é analógica – conforme repetiu num podcast recente, o genoma é um CD lido pelas cabeças gastas de um
gravador de cassetes, e “vamos perdendo a capacidade de ler os genes certos no
momento exato, como fazíamos quando tínhamos 20 anos”. Não tendo de praticar
gerontologia experimental, o desafio que esta formação da África Negra aqui enfrentou
é mais ou menos o mesmo: como aumentar a esperança de vida da banda a partir de
um ponto de restauro criado em 1989. Daí a vontade de cobrir “Alia Cu Omali”
com a solene poeira do latim e pensar que quer dizer qualquer coisa tão
fatídica, final e lapidar quanto “os dados estão lançados” (alea iacta est) ou “a história está acabada”
(acta est fabula) – na realidade, o
título traduz-se do são-tomense por “Areia e Mar” mas não será por isso que soa
menos definitivo, nem que seja, vá lá, por sugerir a firme indiferença do mundo
natural face às nossas múltiplas venturas e desventuras.
No caso da África Negra, a representação da sua ascensão e
queda foi efetivamente levada a cena numa praia, durante uma digressão, em Cabo
Verde, quando o núcleo da banda se dividiu ao meio, ficando de um lado os que
queriam usar as ilhas como um trampolim e partir para os EUA e do outro os que
desejavam regressar a São Tomé e Príncipe. “Era uma altura de mudança!”,
exclamava João Seria há um punhado de anos, enquanto fazia equilibrismo numa
ruela da Cova da Moura, a agilidade dos seus movimentos a dar mostras de lhe acompanhar
a velocidade nas ideias. “Sabe, um jovem tem sempre vontade de saltar por aqui
e por acolá. Dos onze, ficámos sete para trás porque tínhamos um destino que não
se cumpriu. Estava muita coisa a mexer no mundo.” De facto, em 1989, ruíam
oficialmente as ditaduras na Polónia e no Brasil, protestava-se na Praça de
Tiananmen, desmantelava-se a fronteira entre Hungria e Áustria, discutia-se o
fim do Apartheid, caía o Muro de Berlim, os Ceausescu eram executados, Havel subia
ao poder, MPLA e UNITA davam um abraço e até em São Tomé se falava em sistema pluripartidário.
Com a África Negra, desabafava Leonídio Barros: “Corríamos atrás da fama pensando
que ia durar para sempre.”
João e Leonídio (cantor e guitarrista) contam-se
entre os sobreviventes dessa era. No verão de 2014, quando falavam ao Expresso,
reagrupavam-se e punham fim a 25 anos de desencontros – quando lhes perguntei
há quanto tempo não gravavam juntos, no fundo, ficaram a olhar um para o outro,
arrancando calendários das paredes da memória, e Leonídio disse assim: “Desde
meados de 80. Mas nunca mais foi o mesmo. Aquele som, aquela música, perdeu-se.”
Pois, não só não se perdeu, como se achou, o que não é bem a mesma coisa – já
que o assunto são os clássicos, dando inclusivamente razão, e contra todas as
expectativas, a um aforismo de Plínio: em África, há sempre algo de novo. Nessa
perspetiva, que a África Negra tenha conseguido gravar em 2019 o melhor disco
que devia e merecia ter feito em 1989 é uma superior prova de vida – ainda que inédito
comercialmente, este imaculado repertório vem dessa fase. O que por sua vez dá origem
a uma enorme lição de humildade: por mais que garanta o acesso a uma página
maior da história da rumba são-tomense, “Alia Cu Omali” não deixa de fazer
alusão a todas as outras que ficaram por escrever. Talvez por isso se revele
mais indispensável a cada audição.
Sem comentários:
Enviar um comentário