O Jazz im Goethe-Garten deste ano terminará com uma
reviravolta inesperada quando o quarteto Philm, de Philipp Gropper, perguntar:
‘Thinking of the Future (Are You Privileged)?’ Ao final da tarde, numa das
colinas douradas de Lisboa, perante uma plateia preocupada com as alternativas
veganas à bratwurst e com a escassez
de brezel na barraca de comes e
bebes, e profundamente dividida entre a Weihenstephaner e a Erdinger, a
resposta será afirmativa. Seja como for, a cabriolice ideológica andará a par
da estética: protagonistas de “Consequences”, acabado de lançar pela
WhyPlayJazz, os Philm dão aos estilos musicais os mesmos nós que os seus
compatriotas padeiros dão ao pão.
Não estão sós. Nove dias antes, a 3 de julho, e sempre às
19h, quando o festival arrancar ao som de Cat in a Bag será no padroeiro desta
estirpe de contorcionistas, John Zorn, que se pensará. Verdade seja dita, como
Zorn, no passado, também o quarteto português recorreu a quadros de Francis
Bacon (o Houdini da pintura a óleo) de forma a ilustrar convenientemente as
capas do seu tríptico inicial de álbuns. Só lhes falta citar Bataille, como
Zorn, em “Leng Tch’e”, dos Naked City, um bom ponto de comparação para o que
fazem: “O que me enchia de angústia mas, ao mesmo tempo, me libertava, eram
estes perfeitos opostos que confrontavam horror extremo e êxtase divino”,
lia-se.
Semelhantes referências terá o trio de Dave Gisler [na foto], cujo “Rabbits
on the Run” traz não só à memória uma frase de Bataille – “o que está sempre em
questão é substituir o isolamento do ser, a sua descontinuidade, por um sentimento
de continuidade profunda” – como, também, “Strange Meeting”, um disco de correligionários
de Zorn editado pela Antilles em 1987 (e de autoria tripartida entre Bill
Frisell, Melvin Gibbs e Ronald Shannon Jackson). É normal: o jazz europeu está
sempre a tentar devorar a cauda do jazz americano. Dia 5, por exemplo, os Synesthetic
4 recordarão o que Miles Davis e Easy Mo Bee fizeram em ‘High Speed Chase’. E
no dia 11 é provável que Albert Cirera e João Lencastre toquem uma outra ‘High
Speed Chase’ – gravada em quinteto no novo “Parallel Realities” (que foi como
Jack DeJohnette chamou a um disco seu de 1990). Explica o baterista, a
propósito, que é como ter “diferentes mundos musicais a darem-se em simultâneo”,
“faces complementares de uma mesma – múltipla, mas única – realidade”,
acrescentaria o Nietzsche de “Eterno Retorno”.
É um compromisso comum a esta gente (seja ela portuguesa,
suíça, austríaca, espanhola ou alemã) e não se vislumbra desígnio mais
europeísta, até pelas mais variadas ausências que essa predileção obriga a
sincronizar – como a de praticantes cujo vínculo com o jazz não pareça ter sido
contraído tão indevidamente, ainda que de boa-fé. Talvez por isso, pela visão
quimérica que o jazz promove no imaginário europeu, suba dia 10 ao palco o
italiano Ghost Trio invocando espectros de Ayler e Beckett. Contínuos desvios
ao cânone que lembram uma frase ouvida em “Europa”, de Lars von Trier: “Queres
acordar… Queres libertar-te da imagem da Europa. Mas não é possível.” Não custa
tentar.
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