Um (Goerne) foi obrigado a cancelar compromissos em
consequência de uma inadiável operação ao joelho, o outro também (Ove Andsnes),
em virtude de uma lesão no cotovelo e de uma pneumonia ainda mais impostergável,
quiçá – como é óbvio, a Harmonia Mundi não poderia desejar cenário mais
(in)feliz para fazer chegar este CD ao mercado. Com base em leituras de
Heinrich Heine e Justinus Kerner, aí está, então, “Ciclo de Canções” (Op. 24) e
“Doze Poemas” (Op. 35), de Schumann – isto é, obras de um perturbado (que
passou os últimos dias num sanatório, após uma tentativa de suicídio), a partir
de escritos de um pobre sifilítico (que viveu oito anos acamado, antes de falecer)
e de um notável estudioso de metapsíquica (que, a perder gradualmente a visão,
morreu obcecado por borrões de tinta). São vidas tão comunicantes, aliás, que lendo-se
certos versos de Heine (“Sonhando, meio a dormir/ Noctambulo pelo dia”) é no
trabalho que Kerner dedicou ao sonambulismo que se pensa, e passando em revista
certos versos de Kerner (“Partamos, então, em passo acelerado/ Rumo a essa
terra estranha”) é acerca do longo exílio de Heine que se reflete. (Neste
contexto, há uma frase de Kierkegaard – contemporâneo desta gente toda – que é como
um hino ao Zeitgeist: “Não consigo
deixar de me espantar que Kerner seja capaz de interpretar em termos tão
conciliadores um fenómeno que me choca desde a primeira vez que o senti: que
alguém seja capaz de expressar exatamente o que eu penso.”)
Outra coisa não terá levado Schumann à poesia – numa entrada
do seu diário, por sinal, deixou clara a equivalência entre piano e palavra
enquanto extensões imediatas da sua própria subjetividade (“Quando recordo a
infância, atribuo-lhe tonalidades em Lá menor; quando me vem à memória setembro
passado, desencadeiam-se automaticamente dissonâncias em pianissimo. Cada pensamento tem um tom que se lhe ajusta, porque, tal
como um teclado precisa de ser tocado antes de soar, também o meu coração sentiu
já cada um desses tons nas suas cordas.”) Aqui, ao escutar-se “A cada manhã,
levanto-me e pergunto/ Virá, hoje, até mim, a minha amada?” (Heine), “Se me
fosse possível louvar-te cantando/ Cantar-te-ia a mais longa das canções”
(Kerner), “Mais umas horas e poderei vê-la” (Heine) ou “Canção de peito cheio/
Em tempos tão conturbados, só tu me enches de alegria o coração” (Kerner), logo
vem à ideia a ansiedade de Schumann ao longo desse ano em que finalmente se
dedicou à canção (1840) e em que contava os dias até se poder casar com Clara
contra tudo e contra todos, escondido em cafés para a ver passar. Agora, é
Matthias Goerne que prova não ser estranho nenhum à obsessão – principalmente
nos poemas de Heine, hoje, não se vislumbra mais ninguém tão apto quanto ele a temperar
aquele registo médio de melaço que as canções exigem com o sal da ironia e o
vinagre do sarcasmo e a transformar saliva em soda cáustica quando é preciso, lançando
indefesas vogais pela ravina da ditongação ou brunindo consoantes que outros
teriam preferido esmerilar. Nem se imagina melhor companhia que Andsnes. Tudo,
como quem se põe a olhar para o espelho em busca do vulto de Schumann com umas
linhas de “Montes e Castelos” (Heine) em mente: “Bem sei – a cintilante
superfície que os reflete [do Reno]/ Dá abrigo à morte e à noite.” Talvez por
isso tanto se pareça a capa deste disco com metal polido.
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