Em 1913, com o lançamento do primeiro volume de “Em
Busca do Tempo Perdido”, imagina-se a frustração dos empregados de balcão nas
mais prestigiadas casas de partituras de Paris: “A ‘Sonata de Venteuil’? Desconheço.”
Bom, senão isso, qualquer coisa assim do género, pois, na verdade, consciente,
quiçá, de que uma dieta à base de madalenas teria um efeito limitado no
hipocampo dos seus leitores, Marcel Proust tinha-a efetivamente inventado.
Pior, na altura, só Fritz Kreisler, que fazia passar originais seus por peças perdidas
de Couperin, Tartini ou Boccherini – ou, 80 anos mais tarde, Zbigniew Preisner
e Krzysztof Kieslowski, que, em reação à música de “A Dupla Vida de Véronique”,
puseram plateias do mundo inteiro a esquadrinhar lojas de discos à cata de um
tal Van Den Budenmayer. O impulso será mais ou menos o mesmo – afinal, quantas vezes
não damos na arte por uma plenitude de significados ou por uma completude de variáveis
naquilo em que vicariamente largamos o peso dos nossos receios e convicções? Em
Proust era assim, e essa sonata imaginária permitia a seguinte reflexão: “Pereceremos,
mas faremos reféns dessas divinas cativas [frases musicais]. E com elas a morte
será menos amarga, menos inglória, menos provável, talvez.”
Isto, claro, por tornar
espiritualmente real aquilo que nenhuma faculdade intelectual poderá admitir: a
eternidade. Muito precocemente, aos vinte e poucos, nada mais que essa total
aversão ao efémero intimava Guillaume Lekeu (1870-1894) quando compôs estas figuras
de retórica cuja inegável expressividade deriva de procedimentos algo fantasiosos
e cuja unidade temática, diz agora Bruno Monteiro [na foto], cria uma “espécie de estrutura
psicológica constante”. Por isso, há quem insinue que Proust nele se inspirou ao
descrever uma obra que “oculta o mistério da sua incubação” mas que possibilita
a quem a escuta reconhecer “secreta, sussurrante e fragmentariamente” a música
que mais ama. Lekeu não teve tempo para ler Proust, mas leu Mallarmé, que sugeriu
que há “estados de alma” que apenas atingimos ao “decifrar totalmente um
objeto” – isto é, quando a nossa mediação não coarta o impacto das suas ambiguidades.
Lembra este belíssimo disco que foi exatamente isso que Lekeu tentou fazer à
música de câmara.
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