27 de janeiro de 2018

Komitas: Seven Songs (ECM, 2017)



Em 2015, nas notas de apresentação de “Komitas”, do Gurdjieff Ensemble, lia-se a promessa em rodapé: o álbum “Komitas: Piano Compositions”, interpretado por Lusine Grigoryan, será lançado em 2016. Mas hoje em dia até a política editorial traçada a régua e esquadro da ECM se vê exposta ao imprevisto. Ligeiramente atrasado, então, cá está ele, rebatizado “Seven Songs” (da obra “Sete Canções”, embora inclua ainda “Msho Shoror”, “Sete Danças”, “Toghik” e as miniaturais “Peças para Crianças”). Em rigor, mais mês, menos mês, não se trata de um descuido. Até porque há uma forte razão para que estes dois discos – gravados na mesma altura e com repertório em comum – tenham saído por esta ordem. Isto é, contrariando o que é habitual em iniciativas desta natureza, que o registo da música do malogrado Komitas (1869-1935) em novas orquestrações, levado a cabo pelo grupo liderado por Levon Eskenian, tenha saído primeiro que estoutro em que se publicam as suas composições originais. 

Não tanto pelo motivo óbvio (de estas obras terem tradicionais arménios como ponto de partida) quanto por aquilo que diz Grigoryan à “Gramophone” deste mês: “É a segunda vez que gravei estas peças. Pensava tê-las dominado em 2004. Mas ao escutar [a sua transposição para o conjunto de instrumentos folclóricos de Eskenian] senti que tinha novamente de lhes pegar, com os arranjos frescos nos ouvidos.” Ou seja, de modo a aproximar-se mais convenientemente do que considera factos autênticos, a pianista seguiu a via da fantasia. O que é apropriado. Como no caso de Bartók em relação aos modos musicais da planície da Panónia, muitas das fascinantes criações de Komitas apontam no sentido de uma Arménia mítica, pré-cristã, idealizada, preservada na imaginação em virtude das sucessivas ameaças à sua integridade territorial, frequentemente reduzida a nada. Ao tocá-las pela Europa, há três anos, quando se assinalava o centenário do Genocídio Arménio, Grigoryan via que as plateias não conseguiam entender de onde e quando elas vinham. Do pó, claro. E ao pó retornarão. Mas certo é que um dia deram corpo à esperança.

Ella Fitzgerald “Ella at Zardi’s” (Verve, 2017)



Cantava e o mundo parecia um lugar livre de perigo. Nessa medida, ao invés de uma intérprete como Billie Holiday, digamos, em que tudo era complicadamente extravagante e contraditório, Ella Fitzgerald conseguia a todo o custo combinar compaixão com clareza moral e criatividade com credibilidade. Claro que, com o passar dos anos, quando continuava a fazer com sílabas o que praticantes de ginástica rítmica faziam com arco, bola ou fita, veio precisamente a ser criticada pelo grau de confiança que exibia. Mas mesmo em final de carreira refreava um refrão e aparentava desacelerar o rigor mortis no repertório. Em meados do século passado, na Verve, gravou uma série de discos que se revelou uma Arca da Aliança para os grandes livros de canções norte-americanos, principalmente aqueles saídos da pena de Cole Porter, Rodgers & Hart, Irving Berlin, irmãos Gershwin e Harold Harlen – se bem que, antes disso, quando publicou a fotografia aí em baixo, já a “Down Beat” admitia que era “um cliché apelidá-la de maior cantora do mundo”, que a coroa cravejada de diamantes no seu peito era mais que uma mera pregadeira. 

Ella era a ‘rainha do jazz’ (os mais presidencialistas chamavam-na de ‘primeira dama’) e, como tal, não dispensava a sua corte – é ouvi-la, aqui, a 2 de fevereiro de 1956, a acalmar a plateia dizendo que vai atender mais pedidos mas que primeiro quer dedicar ‘A-Tisket, A-Tasket’ a Van Alexander, seu co-autor, “sentado à minha direita, aos Sr. e Sra. MacRae [i.e., ao cantor e ator Gordon MacRae e à sua mulher, Sheila], a Gordon Jenkins [orquestrador]... Credo! O que é que se passa hoje…? Isto está de loucos!” O que terá exclamado meses antes, quando, depois de Marilyn Monroe ter intercedido por si, atuou no clube Mocambo, perante os rostos embevecidos de Frank Sinatra, Judy Garland e Eartha Kitt, não se sabe. Seja como for, no Zardi’s Jazzland foi feliz (ia entrar em estúdio ao abrigo de um novo contrato com a editora de Norman Granz e vinha de vencer na justiça um processo por descriminação contra a Pan Am). Estranho é este registo ter ficado 62 anos na prateleira, quiçá à espera do tal mundo livre de perigo. Ainda não o é, longe disso. Mas quando Ella canta, parece.

20 de janeiro de 2018

Mozart: Requiem (Harmonia Mundi, 2017)


A propósito do inacabado “Requiem”, é costume citar-se a carta que Mozart escreveu ao seu exânime pai, a 4 de abril de 1787: “Sendo que a finalidade da nossa existência é a morte, adquiri, desde algum tempo, tamanha familiaridade com esta amiga sincera e sumamente querida do homem, que a sua imagem não só não possui nada de aterrador como me parece, até, muito tranquilizante e consoladora.” Se é que a análise das suas cartas serve de alguma coisa, talvez por isso se tenha ele mantido uniformemente entusiasmado ao longo de outubro e novembro de 1791, ao trabalhar na dita missa. Contudo, o colorido folclore em redor do fim da sua vida, a 5 de dezembro desse ano, aponta noutro sentido: acamado, e em agonia, consta que ao compor estaria ciente do seu falecimento iminente. Portanto, não admira que venha agora o jovem compositor francês Pierre-Henri Dutron falar de “lendas” e “controvérsias”, de “rumores” e “incoerências”: “Muito daquilo que se refere à sua história póstuma permanece obscuro”, diz, em notas de apresentação do CD que nos traz a sua nova orquestração da obra. 

Isto, claro, ao elencar o dramatis personae do “Requiem”: o conde Franz von Walsegg, que o encomendou, desejando dedicá-lo à memória da sua mulher, desaparecida em fevereiro; um emissário seu, que bateu à porta de Mozart de capote e chapéu tricórnio cinzentos – se bem que, hoje, nesta narrativa, dê mostra de possuir a mesma importância que tinha em “Tieta” a ‘Mulher de Branco’; Constanze, a viúva de Mozart, que, como considera o musicólogo Hartmut Schick, “se pôs a espalhar uma série de factos contraditórios acerca do ‘Requiem’, alguns notoriamente falsos”; Leopold Eybler, aluno de Albrechtsberger, que tinha participado nos ensaios de “Così fan tutte” e que, a pedido de Constanze, acrescentou elementos à orquestração da Sequentia; Maximilian Stadler, compositor e amigo do casal, que, depois de Eybler, pegou no Offertorium; Franz Xaver Süssmayr, pupilo de Salieri, empregue como assistente por Mozart, em “Clemência de Tito” e “A Flauta Mágica”, que finalmente terminou a obra; não esquecendo Alexander Pushkin e Peter Shaffer, que, respetivamente em 1830 e 1979, um com “Mozart e Salieri”, o outro com “Amadeus” (levado ao grande ecrã em 1984), semearam provas pelo local do crime. 

Perante isto, o que fazer? Quem sabe, simplificar ainda mais aquilo que Mozart deixou esboçado: além do ‘Requiem aeternam’ completo, no Introitus, um ‘Kyrie’ bem encaminhado; as partes vocais da Sequentia (de ‘Dies Irae’ a ‘Confutatis’); os oito compassos iniciais de ‘Lacrimosa’; alguns fragmentos orquestrais. Porque considera as contribuições de Süssmayr, neste “Requiem”, Dutron não está numa estação arqueológica, a esquadrinhar o terreno, sedimento a sedimento, de pincel e espátula na mão – dir-se-ia mais o intruso que se dá por convidado numa casa que não é a sua e se põe a mudar umas coisas do lugar. O resultado será mais intrigante do que convincente, mas, embora incomparável, esta versão dirigida por Jacobs traz à memória aqueloutra de Gardiner, de 1987, plena de contrastes, em que surgia um Mozart capaz de suspeitar que não seria digno do “repouso eterno” que pedia para os demais.

Elmer Bernstein/Chico Hamilton Quintet "Sweet Smell of Success" (Verve, 2017)



Em 2000, num livro de memórias, Buddy Collette refletia sobre improvisação. Dava como exemplo o carácter algo arbitrário daquilo que se passava no quinteto de Chico Hamilton: “Um de nós sugeria um motivo, uma figura, e prosseguíamos com respostas, cadências, fugas, recapitulações, esse tipo de coisas. As frases iam circulando [entre os membros do grupo], desdobravam-se e regressavam como um eco.” Havia já Collette abandonado a banda, trata-se de uma boa descrição para o que acontece em ‘Concerto of Jazz Themes from the Sound Track of ‘Sweet Smell of Success’’, um marco na história da música improvisada a que não se dá o devido apreço. Numa coluna de 2003, na “Down Beat”, no ano passado reproduzida em “Vinyl Freak”, John Corbett foi dos poucos a dar por ele: “Tinha ouvido dizer que alguns grupos de Hamilton tocavam de modo espontâneo, e não se trata de uma prática sem precedentes. Mas creio que esta pode ter sido a primeira vez que se ocupou o lado inteiro de um LP com música livre."

Porque nada do que aí se escuta efetivamente acompanha o desenrolar da ação, a Fresh Sound excluiu-a da reedição que fez em 2008 da integral da música composta para o filme de Alexander Mackendrick – mas ela aqui está, tal como, no mesmo ano, surgiu noutro lançamento semelhante da él (aí, o corte de cabelo feito à matriz fonográfica, em vinil, fez algumas peladas; aqui, presume-se que a partir das fitas da Decca, o penteado assenta melhor mas saiu curto – em relação ao alinhamento de 1957, falta ‘Jonalah’). Agora, além do que fizeram Hamilton e Fred Katz, acompanhados por Paul Horn, Carson Smith e John Pisano, inclui-se igualmente neste título a música composta por Elmer Bernstein, desta feita na sua sequência original. Há metais com surdina (na banda sonora, dir-se-ia cumprirem a função, para quem agride, do sabonete dentro da meia: ferir sem deixar uma nódoa negra), cordas de mau agoiro e exatamente o que se espera para um filme tão negro que a luz do sol só aparece ao minuto 45. Bem à medida dos papéis de Burt Lancaster e Tony Curtis, como ratos de laboratório num labirinto de néon.