Em “Meet Me at Jim & Andy’s”, um extraordinário
livro de ensaios, Gene Lees recorda um paradoxo de Bill Evans e conta como, certa
vez, sentado ao lado do pianista, a vê-lo tocar, reparou no modo em que Bill,
numa frase que terminava numa breve ou numa semibreve, deixou o dedo colado à
tecla, trémulo, como que a pousá-lo numa almofada de carimbo antes de lhe
tirarem a impressão digital: “O martelo já tinha batido na corda – ou seja,
naquele momento já não podia haver qualquer contacto físico com o som. Por isso
meti-me com ele: ‘Não sabes que o piano não tem vibrato?’, perguntei. ‘Sei, mas [pensar que o posso produzir na
última nota] afeta tudo o que vem antes na frase’, respondeu o Bill.” Em
“Elegia”, para violoncelo e dois tantãs, lê-se a seguinte indicação de Valentin
Silvestrov quanto à forma de se dar início à interpretação da sua peça: “Passar
a mão pelo tantã sem fazer um único som.”
Embora se trate de um livro que
raramente acerta na muche, há qualquer coisa de “Zen e a Arte do Tiro com Arco”,
de Eugen Herrigel, na maneira como Evans e Silvestrov colocam a ênfase na
língua gestual: ao estilo do arqueiro que não se entrega à sua arte com o “mero
intuito de acertar no alvo”, como se a realidade última da música, como
exercício de consciência, não fosse o som e sim o silêncio. Silvestrov, um dia,
disse ter sentido uma “fome de silêncio” naquele instante em que deixou a sua
obra derrapar para os abismos metafóricos que desde meados de 70 a
caracterizam. Aliás, há 25 anos, mais coisa, menos coisa, em resposta a uma
carta, o seu editor enviou-me a partitura de “Música Kitsch”, para piano,
acompanhada de uma nota escrita por Silvestrov: “Estas peças devem ser
executadas suavemente, com muita ternura, como que à distância, num tom
afundado dentro de si, estimulando a memória do ouvinte ao ponto de se
assemelharem a uma tomada de consciência ou, melhor, como se estivessem a ser
cantadas pela própria memória de quem as escuta.” Nenhuma frase descreve tão
bem a sua música de câmara para violoncelo, feita com a intenção dos epitáfios:
espalhar luz num mundo de sombras.
Sem comentários:
Enviar um comentário