20 de janeiro de 2018

Mozart: Requiem (Harmonia Mundi, 2017)


A propósito do inacabado “Requiem”, é costume citar-se a carta que Mozart escreveu ao seu exânime pai, a 4 de abril de 1787: “Sendo que a finalidade da nossa existência é a morte, adquiri, desde algum tempo, tamanha familiaridade com esta amiga sincera e sumamente querida do homem, que a sua imagem não só não possui nada de aterrador como me parece, até, muito tranquilizante e consoladora.” Se é que a análise das suas cartas serve de alguma coisa, talvez por isso se tenha ele mantido uniformemente entusiasmado ao longo de outubro e novembro de 1791, ao trabalhar na dita missa. Contudo, o colorido folclore em redor do fim da sua vida, a 5 de dezembro desse ano, aponta noutro sentido: acamado, e em agonia, consta que ao compor estaria ciente do seu falecimento iminente. Portanto, não admira que venha agora o jovem compositor francês Pierre-Henri Dutron falar de “lendas” e “controvérsias”, de “rumores” e “incoerências”: “Muito daquilo que se refere à sua história póstuma permanece obscuro”, diz, em notas de apresentação do CD que nos traz a sua nova orquestração da obra. 

Isto, claro, ao elencar o dramatis personae do “Requiem”: o conde Franz von Walsegg, que o encomendou, desejando dedicá-lo à memória da sua mulher, desaparecida em fevereiro; um emissário seu, que bateu à porta de Mozart de capote e chapéu tricórnio cinzentos – se bem que, hoje, nesta narrativa, dê mostra de possuir a mesma importância que tinha em “Tieta” a ‘Mulher de Branco’; Constanze, a viúva de Mozart, que, como considera o musicólogo Hartmut Schick, “se pôs a espalhar uma série de factos contraditórios acerca do ‘Requiem’, alguns notoriamente falsos”; Leopold Eybler, aluno de Albrechtsberger, que tinha participado nos ensaios de “Così fan tutte” e que, a pedido de Constanze, acrescentou elementos à orquestração da Sequentia; Maximilian Stadler, compositor e amigo do casal, que, depois de Eybler, pegou no Offertorium; Franz Xaver Süssmayr, pupilo de Salieri, empregue como assistente por Mozart, em “Clemência de Tito” e “A Flauta Mágica”, que finalmente terminou a obra; não esquecendo Alexander Pushkin e Peter Shaffer, que, respetivamente em 1830 e 1979, um com “Mozart e Salieri”, o outro com “Amadeus” (levado ao grande ecrã em 1984), semearam provas pelo local do crime. 

Perante isto, o que fazer? Quem sabe, simplificar ainda mais aquilo que Mozart deixou esboçado: além do ‘Requiem aeternam’ completo, no Introitus, um ‘Kyrie’ bem encaminhado; as partes vocais da Sequentia (de ‘Dies Irae’ a ‘Confutatis’); os oito compassos iniciais de ‘Lacrimosa’; alguns fragmentos orquestrais. Porque considera as contribuições de Süssmayr, neste “Requiem”, Dutron não está numa estação arqueológica, a esquadrinhar o terreno, sedimento a sedimento, de pincel e espátula na mão – dir-se-ia mais o intruso que se dá por convidado numa casa que não é a sua e se põe a mudar umas coisas do lugar. O resultado será mais intrigante do que convincente, mas, embora incomparável, esta versão dirigida por Jacobs traz à memória aqueloutra de Gardiner, de 1987, plena de contrastes, em que surgia um Mozart capaz de suspeitar que não seria digno do “repouso eterno” que pedia para os demais.

Sem comentários:

Enviar um comentário