A propósito do inacabado “Requiem”, é costume
citar-se a carta que Mozart escreveu ao seu exânime pai, a 4 de abril de 1787:
“Sendo que a finalidade da nossa existência é a morte, adquiri, desde algum
tempo, tamanha familiaridade com esta amiga sincera e sumamente querida do
homem, que a sua imagem não só não possui nada de aterrador como me parece,
até, muito tranquilizante e consoladora.” Se é que a análise das suas cartas
serve de alguma coisa, talvez por isso se tenha ele mantido uniformemente
entusiasmado ao longo de outubro e novembro de 1791, ao trabalhar na dita missa.
Contudo, o colorido folclore em redor do fim da sua vida, a 5 de dezembro desse
ano, aponta noutro sentido: acamado, e em agonia, consta que ao compor estaria
ciente do seu falecimento iminente. Portanto, não admira que venha agora o
jovem compositor francês Pierre-Henri Dutron falar de “lendas” e
“controvérsias”, de “rumores” e “incoerências”: “Muito daquilo que se refere à
sua história póstuma permanece obscuro”, diz, em notas de apresentação do CD
que nos traz a sua nova orquestração da obra.
Isto, claro, ao elencar o dramatis personae do “Requiem”: o conde
Franz von Walsegg, que o encomendou, desejando dedicá-lo à memória da sua
mulher, desaparecida em fevereiro; um emissário seu, que bateu à porta de Mozart
de capote e chapéu tricórnio cinzentos – se bem que, hoje, nesta narrativa, dê
mostra de possuir a mesma importância que tinha em “Tieta” a ‘Mulher de Branco’;
Constanze, a viúva de Mozart, que, como considera o musicólogo Hartmut Schick,
“se pôs a espalhar uma série de factos contraditórios acerca do ‘Requiem’,
alguns notoriamente falsos”; Leopold Eybler, aluno de Albrechtsberger, que tinha participado nos ensaios de “Così fan tutte”
e que, a pedido de Constanze, acrescentou elementos à orquestração da Sequentia;
Maximilian Stadler, compositor e amigo do casal, que, depois de Eybler, pegou
no Offertorium; Franz Xaver Süssmayr, pupilo de Salieri, empregue como
assistente por Mozart, em “Clemência de Tito” e “A Flauta Mágica”, que finalmente
terminou a obra; não esquecendo Alexander Pushkin e Peter Shaffer, que,
respetivamente em 1830 e 1979, um com “Mozart e Salieri”, o outro com “Amadeus”
(levado ao grande ecrã em 1984), semearam provas pelo local do crime.
Perante
isto, o que fazer? Quem sabe, simplificar ainda mais aquilo que Mozart deixou
esboçado: além do ‘Requiem aeternam’ completo, no Introitus, um ‘Kyrie’
bem encaminhado; as partes vocais da Sequentia (de ‘Dies Irae’ a
‘Confutatis’); os oito compassos iniciais de ‘Lacrimosa’; alguns fragmentos
orquestrais. Porque considera as contribuições de Süssmayr, neste “Requiem”,
Dutron não está numa estação arqueológica, a esquadrinhar o terreno, sedimento
a sedimento, de pincel e espátula na mão – dir-se-ia mais o intruso que se dá
por convidado numa casa que não é a sua e se põe a mudar umas coisas do lugar.
O resultado será mais intrigante do que convincente, mas, embora incomparável, esta
versão dirigida por Jacobs traz à memória aqueloutra de Gardiner, de 1987, plena
de contrastes, em que surgia um Mozart capaz de suspeitar que não seria digno
do “repouso eterno” que pedia para os demais.
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