Cantava
e o mundo parecia um lugar livre de perigo. Nessa medida, ao invés de uma
intérprete como Billie Holiday, digamos, em que tudo era complicadamente extravagante
e contraditório, Ella Fitzgerald conseguia a todo o custo combinar compaixão
com clareza moral e criatividade com credibilidade. Claro que, com o passar dos
anos, quando continuava a fazer com sílabas o que praticantes de ginástica
rítmica faziam com arco, bola ou fita, veio precisamente a ser criticada pelo
grau de confiança que exibia. Mas mesmo em final de carreira refreava um refrão
e aparentava desacelerar o rigor mortis
no repertório. Em meados do século passado, na Verve, gravou uma série de
discos que se revelou uma Arca da Aliança para os grandes livros de canções
norte-americanos, principalmente aqueles saídos da pena de Cole Porter, Rodgers
& Hart, Irving Berlin, irmãos Gershwin e Harold Harlen – se bem que, antes
disso, quando publicou a fotografia aí em baixo, já a “Down Beat” admitia que era
“um cliché apelidá-la de maior
cantora do mundo”, que a coroa cravejada de diamantes no seu peito era mais que
uma mera pregadeira.
Ella era a ‘rainha do jazz’ (os mais presidencialistas
chamavam-na de ‘primeira dama’) e, como tal, não dispensava a sua corte – é
ouvi-la, aqui, a 2 de fevereiro de 1956, a acalmar a plateia dizendo que vai atender
mais pedidos mas que primeiro quer dedicar ‘A-Tisket, A-Tasket’ a Van
Alexander, seu co-autor, “sentado à minha direita, aos Sr. e Sra. MacRae [i.e., ao cantor e ator Gordon MacRae e à
sua mulher, Sheila], a Gordon Jenkins [orquestrador]... Credo! O que é que se
passa hoje…? Isto está de loucos!” O que terá exclamado meses antes, quando, depois
de Marilyn Monroe ter intercedido por si, atuou no clube Mocambo, perante os
rostos embevecidos de Frank Sinatra, Judy Garland e Eartha Kitt, não se sabe.
Seja como for, no Zardi’s Jazzland foi feliz (ia entrar em estúdio ao abrigo de
um novo contrato com a editora de Norman Granz e vinha de vencer na justiça um
processo por descriminação contra a Pan Am). Estranho é este registo ter ficado
62 anos na prateleira, quiçá à espera do tal mundo livre de perigo. Ainda não o
é, longe disso. Mas quando Ella canta, parece.
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