14 de novembro de 2015

Biber: Missa Salisburgensis, à 54 (Alia Vox, 2015)




Hespèrion XXI, Le Concert des Nations, La Capella Reial de Catalunya, Jordi Savall


Em alusão à utopia, Quevedo dizia que se tratava de um lugar que não existe. Mas aí está Jordi Savall a refutá-lo, desta feita por intermédio de uma obra que, com propriedade, descreve nestes termos: “Como o fulgurante clarão de uma enorme e misteriosa nebulosa musical, a deslumbrante ‘Missa Salisburgensis’ domina o universo da música policoral.” Para não falar, já, no atraso da sua atribuição a Heinrich Ignaz Franz von Biber (1644-1704), cujas confusas circunstâncias são no livreto esmiuçadas pelo professor Ernst Hintermaier, refere-se o maestro, claro, à complexidade e riqueza da organização da missa e, de modo enfático, aos meios – as tais 54 vozes – que ela coloca ao serviço de uma expressão sonora e espacial única para o seu tempo. Sem cerimónia, reconhece igualmente que, no seu conjunto, os símbolos a que remete representam com “exuberância e eficácia toda a força e grandeza do poder divino e religioso.” E militar, também. Os coros de trompetas a que recorre, apesar das epidemias e rebeliões da sua era, mais depressa cantam vitórias na terra do que abrem de par em par as portas do céu (como complemento, ouça-se neste programa o badalar patrioteiro de “Plaudite Tympana” ou os clarins marciais de “Battalia, à 10”). Tem muito disto o esplendor do barroco. E é curioso que Savall vá acumulando acoladas que o distinguem enquanto propedeuta da paz e da tolerância no contexto do multiculturalismo à medida que, em disco, edita obras que contradizem em absoluto semelhantes valores. Dir-se-ia, aliás, que tem a vida facilitada aquele que, olhando para esta capa, logo descubra o ‘olho de Deus’ ao invés da ‘nebulosa da hélice’, apesar de serem uma e a mesma coisa. Basta atentar a um Credo em que estão bem patentes estas singularidades, capazes de evocar de uma assentada as dores da confissão individual e os deleites da comunhão coletiva. Talvez esse seja o seu maior mistério.

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