Hespèrion XXI, Le Concert
des Nations, La Capella Reial de Catalunya, Jordi Savall
Em alusão à utopia, Quevedo dizia
que se tratava de um lugar que não existe. Mas aí está Jordi Savall a refutá-lo,
desta feita por intermédio de uma obra que, com propriedade, descreve nestes
termos: “Como o fulgurante clarão de uma enorme e misteriosa nebulosa musical,
a deslumbrante ‘Missa Salisburgensis’ domina o universo da música policoral.” Para
não falar, já, no atraso da sua atribuição a Heinrich Ignaz Franz von Biber
(1644-1704), cujas confusas circunstâncias são no livreto esmiuçadas pelo professor
Ernst Hintermaier, refere-se o maestro, claro, à complexidade e riqueza da
organização da missa e, de modo enfático, aos meios – as tais 54 vozes – que ela
coloca ao serviço de uma expressão sonora e espacial única para o seu tempo.
Sem cerimónia, reconhece igualmente que, no seu conjunto, os símbolos a que
remete representam com “exuberância e eficácia toda a força e grandeza do poder
divino e religioso.” E militar, também. Os coros de trompetas a que recorre,
apesar das epidemias e rebeliões da sua era, mais depressa cantam vitórias na
terra do que abrem de par em par as portas do céu (como complemento, ouça-se
neste programa o badalar patrioteiro de “Plaudite Tympana” ou os clarins marciais
de “Battalia, à 10”). Tem muito disto o esplendor do barroco. E é curioso que
Savall vá acumulando acoladas que o distinguem enquanto propedeuta da paz e da
tolerância no contexto do multiculturalismo à medida que, em disco, edita obras
que contradizem em absoluto semelhantes valores. Dir-se-ia, aliás, que tem a
vida facilitada aquele que, olhando para esta capa, logo descubra o ‘olho de
Deus’ ao invés da ‘nebulosa da hélice’, apesar de serem uma e a mesma coisa.
Basta atentar a um Credo em que estão
bem patentes estas singularidades, capazes de evocar de uma assentada as dores
da confissão individual e os deleites da comunhão coletiva. Talvez esse seja o
seu maior mistério.
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