Nas
idas e vindas da emissora nacional, cujo arquivo espiolhava, Samy Ben Redjeb deslocava-se
num todo-o-terreno com vidros à prova de bala e uma escolta de quatro homens armados
com AK-47, mas andava com a cabeça na lua. Estava na capital da Somália há um
mês e, numa sala de 100 m2, num canto, em equilíbrio precário, por entre cerca
de 20.000 bobines, funcionários da Rádio Mogadíscio haviam-lhe apontado uma
pilha de fitas por processar: “Trata-se de música que ninguém consegue
identificar, na sua maioria instrumental ou um bocado estranha”, diziam-lhe. Redjeb
sentia o tempo a dobrar-se sobre si mesmo, as coisas a voltar ao início, embora
as feridas que à sua passagem se acumulam estivessem por todo o lado – e talvez
tivesse viajado até ali precisamente para lhes arrancar as crostas.
Na bagagem,
levava já formidáveis achados: de 1979, por exemplo, umas gravações da Bakaka
Band da altura da Guerra de Ogaden; de 1991, outras da Dur-Dur Band, captadas
na Etiópia e no Djibuti, em plena fuga à Guerra Civil. Mas o que mais o
impressionava eram os temas de meados de 80 de Omar Shooli (no ritmo dhaanto, cuja síncope é em tudo
semelhante à do reggae), de Mukhtar
Ramadan Iidi (vocalista da Shareero Band e, depois, da Dur-Dur), dos Iftin (do
cantor Mahmud Abdalla Hussen, mais conhecido por Jerry) e de Shimaali Ahmed
Shimaali com Ahmed Sharif Killer (quando estavam os dois na Iftin) – devidamente
reprocessada no idioma local, uma retransmissão de sinais captados a ocidente
que só aquele casamento de conveniência entre o regime de Siad Barre e os EUA
permitia. Entrevistando alguns dos músicos que sobreviveram a essa era, Ben
Redjeb toma nota de nomes como James Brown, Jimmy Cliff, Fela Kuti, Santana ou
Michael Jackson, e assiste, maravilhado, à descrição de noites lendárias passadas
entre dignitários do Golfo de Áden nas boates dos hotéis Juba, Al-Uruba, Lido
ou Jazeera Palace, hoje em ruínas. No seu próprio quarto, consciente da sua
missão – digitalizar o maior número de canções possível para as lançar através
da Analog Africa – mas a aguardar indicações do diretor da Rádio, frustrado e
vagamente paranóico, Redjeb estava um pouco como Martin Sheen no início de
“Apocalypse Now”, à beira de mergulhar no coração das trevas. Na manhã de 11 de
dezembro de 2016 acorda com um estrondo: um ataque suicida na zona portuária fazia
30 mortos. Sobressaltado, vê da janela a sua escolta a chegar. Falam como se
nada fosse e, na Rádio, após um ligeiro compasso de espera, o seu interlocutor
desfaz-se em desculpas, pois atrasou-se a deixar no cemitério o corpo de um amigo apanhado na explosão. Redjeb olha para ele, sem saber bem o que dizer. Não faz mal – na
Somália, é para isso mesmo que serve a música.
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