O documentário arranca no Haiti, em
62, numa cerimónia vodu junto à catarata Le Saut. O locutor, com solene sobranceria,
relata estarmos a “testemunhar manifestações com origem na mais negra África”,
mas as câmaras, ao contrário dos espíritos, são incapazes de possuir os “nativos”
que se banham nas águas da Montagne Terrible. Sem demora – e ao jeito do
“Jornal Português”, de António Lopes Ribeiro – surge nova curta-metragem de
atualidades filmadas numa parada militar na Havana do ‘Coronel Batista’, em
vésperas da sua factual ascensão à presidência de Cuba; o apresentador, primeiro
circunspetamente mas logo com desembaraço, insinua que por essas instáveis
paragens só com mão-de-ferro se põe cobro à balbúrdia política. Um salto no
tempo de duas décadas e, num mercado de Brixton, eis a prova de que “as
donas-de-casa são todas iguais”, com a reportagem escoltando caribenhas de
banca em banca, servindo de virtuoso exemplo de integração ao adquirir produtos
tão frescos quão recentes na memória estavam os motins raciais de 58, em Notting
Hill. Depois visita-se a lenitiva Nassau em 37: um idílio estival para os
“súbditos da Coroa”, “porto de abrigo” retratado como uma utopia turística alicerçada
no colonialismo. E assim sucessivamente, em meia centena de pequenos filmes
extraídos às bobines da British Pathé. Os exóticos destinos – da Jamaica às Ilhas
Virgens, de Bermuda a Barbados – aparecem febrilmente sequenciados, num
processo que transfere para objetos cinematográficos a prática normalmente aplicada
pela Soul Jazz a registos fonográficos. O resultado é continuamente intrigante,
ocasionalmente perverso e ilustra desacreditadas teses em questões de género, classe
ou carácter biológico, levando ainda a refletir sobre modelos de comunicação,
medidas de controlo social ou sistemas de organização governativa e a interrogar
noções de identidade, cidadania e representação. É também, no contexto do
desenvolvimento ao longo dos anos de uma peculiar perceção da realidade antilhana
no Reino Unido, uma meditação acerca do valor contemporâneo dos arquivos
audiovisuais – nomeadamente dos pré-televisivos – e da sua validade documental
e pertinência historiográfica.
A narrativa principal de
“Mirror to the Soul” oculta fascinantes temáticas secundárias: uma dirá respeito
à própria Pathé e ao seu coerente ‘sentido de Estado’, seja na condescendência com
que mostra o quotidiano das colónias, seja a acompanhar a jubilante receção a membros
da Família Real ou na maneira em que promove o imperativo moral de se acolherem
emigrantes na sociedade londrina; outra terá que ver, precisamente, com a
experiência dos caribenhos na capital inglesa, informando quanto à sua
participação na Segunda Guerra Mundial, divulgando a ação de trupes de dança e agrupamentos
musicais, noticiando a chegada do navio Empire Windrush, em 48 expedido de
Kinsgton com 500 passageiros “em busca de uma vida melhor”, ou denunciando a
violência de quem via na miscigenação um prenúncio para a derrocada civilizacional;
depois, vários segmentos consagrados à exploração da matéria-prima das ilhas –
sal, açúcar, rum, café, banana, ananás – através de multinacionais sublinham a
ilusão da independência sempre que a soberania económica é elusiva; outros,
capturando em película as tropas de Fidel Castro e depoimentos de Kennedy por
alturas da invasão da Baía dos Porcos ou da crise dos mísseis, permitem
observar as relações entre Cuba e os EUA durante a Guerra Fria; mas a mais sedutora
será, porventura, a mais propagandística, que é a que promulga uma ideia de
paraíso tropical que dura até hoje, em trechos excursionistas enodoados pelo racismo.
Em complemento, compilam-se num livreto elucidativos textos do organizador, Stuart
Baker, e uma apócrifa – e, dada a sua sincronização com as imagens no DVD,
controversa – banda-sonora colige raridades (André Toussaint, Lord Brynner,
Irakere, El Gran Combo) e grupos afro-caribenhos familiares à editora (Black Caribs of Belize, Oba-Ilu, Tumba
Francesa). No fundo, é apenas apropriado que tal prolixidade não afaste em
definitivo os fantasmas do imperialismo cultural.
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