Tomar-se-á “Shemonmuanaye” por uma
obra tão anacrónica na modernidade etíope quanto, por exemplo, “Lifespan”, de
Terry Riley, em 1975, o foi no minimalismo norte-americano. O que, pese embora
a sua inverosimilhança face a tudo o que se tem como certo, não quer dizer que se
deva disputar a sua autenticidade. Tratar-se-á, ao invés, de mais uma correção
aplicada à história da música por uma exceção ao cânone. Afinal, há algo de ilícito
nestas quiméricas gravações caseiras com que Hailu Mergia – em tempos teclista e
acordeonista na famosa Walias Band mas, em 1985, à data da edição desta
cassete, e após deserção, já uma celebridade menor no seio da diáspora constituída
no exílio – iludia a necessidade de se fazer acompanhar por instrumentistas. E
esse impulso – um utópico recurso para, quiçá inadvertidamente, alterar de
maneira substancial, e à distância, o dispositivo formal de que se socorriam
valetudinários conjuntos em Adis Abeba – dá mostras de servir uma doutrina em
tudo inversa àquela mais em voga na altura em que se produziam estes onze
temas. Ou seja, contrariamente à ideia postulada em “We Are the World”, Mergia
prometia aqui uma espécie de redenção à escala microscópica, dependente da
noção de que o mundo é feito de pequenos mundos. E por ter preferido a fantasia
– munido de sintetizador, piano elétrico e caixa de ritmos, e imbuído pelo espírito
do jazz – arriscou a transcendência nos rigorosamente vigiados quadrantes das
tradições tigrínia, amárica e oromo, assinando assim, presume-se, a sua
obra-prima. E apesar de só agora, que se vê reintroduzida na era digital, se compreender
o alcance dessa epifania, Mergia – hoje taxista na cidade de Washington – aí
está para relembrar que, mais do que reescrevê-la, se pode sempre tornar a
imaginar a narrativa do passado. Toca dia 5 de dezembro no Musicbox, em Lisboa.
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