Há por vezes um vazio crítico em torno dos sons que chegam do Mali. Ou, na melhor das hipóteses, valoriza-se o arremesso instrumental e ignora-se a lírica. O melhor e o pior deste sucessor de “Segu Blue” reforçará a evidência. Porque triunfa o álbum ao abraçar o mundo sensual e falha ao estender-se ao político sem que isso perturbe a sua eufórica recepção na imprensa europeia: mas em nenhuma outra arte popular terá ainda significado quem, por exemplo, refere as crianças como o futuro ou as mulheres como mães de todos nós enquanto sugere que é hora de acabar com as guerras. E logo quando se anuncia num título que, no campo da etnicidade, é exemplarmente aforístico: fala hoje em inglês o jeli (cantor de louvor) que, vindo da tradição Bamana, afirma cantar no dialecto Fula. A música, em parte, corresponde a essa nova lingua franca. E, num contexto de inédita elegância (quarteto de ngoni), combinando estilos de rara conjugação e com Vieux Farka Touré ou Toumani Diabaté como convidados, consegue este segundo disco de Bassekou Kouyaté acercar-se da construção própria dos clássicos. Deixa é para demasiado tarde – numa tríade que começa numa canção de embalar, passa pela memória de um pai falecido e termina numa balada de caçador – tudo o que de novo, singular e belo tem para dizer.
Textos publicados no semanário português Expresso/ Articles published on the Portuguese weekly Expresso
31 de outubro de 2009
24 de outubro de 2009
Keletigui et ses Tambourinis "The Syliphone Years (1968-1976)”
Não se trata apenas de nostalgia. Até porque sites e blogues como “Radio Africa”, “Voodoo Funk”, “World Service” ou “Likembe” – que funcionam cumulativamente como um arquivo virtual para fonogramas africanos há muito desaparecidos – têm consequências dramaticamente práticas num presente incapaz de gerar ideias originais. Por isso não se reduzirá o seu impulso à contrição dos que lamentam tempo perdido. Pelo contrário, é por seu intermédio que o espectro de acção pop revisita agora uma área que o passar dos anos foi deixando na sombra – a da música moderna com base em África. Mas porque o africanismo não terá de se limitar aos humores e às modas nos meios de produção ocidental surge também quem deite mãos à obra e tente contar a história completa. Graeme Counsel, por exemplo – o impulsionador de “Radio Africa” –, estará em Conacri até Janeiro de 2010 no âmbito do programa Endangered Archives, da British Library, a proceder à catalogação da Syliphone, editora estatal da Guiné. Confirma-se ainda como titular oficioso da série “Authenticité”, através da qual a Sterns restaura históricas gravações de Bembeya Jazz, Balla et ses Balladins, Super Boiro Band ou, de forma absolutamente imaculada, Keletigui et ses Tambourinis. E ao recompensar a relevância estética do que durante décadas se enquadrou na propaganda independentista reflecte o seu trabalho uma inegável dimensão simbólica: a de que a cultura sobrevive à margem de todas as manipulações. Aqui, recuperando a banda de Kélétigui Traoré (falecido há menos de um ano), revê-se a política de autenticidade mandinga instaurada pelo ditador Sékou Traoré e revela-se uma visão que nela se baseou mas em muito a transcendeu. Porque soube diluir fronteiras até ao ponto em que introduções em saxofone a evocar Lester Young, versões do Sexteto Habanero cantadas em espanhol, rumba congolesa, solos de trompete derivados daquilo que Félix Chappottin fazia na charanga de Arsenio Rodríguez, ritmos antilhanos similares aos que levaram Richard Berry a compor ‘Louie Louie’ e o mais primordial melodismo folclórico em quase tudo comum ao do Mali – e empregue de forma semelhante à da Rail Band – serviram para justificar o injustificável: a invenção de uma identidade mais guineense do que africana. E na sua audição cronológica identifica-se um discurso progressivamente menos formular, ainda que sempre permeável à diáspora, e, em paralelo, desvenda-se uma meta-narrativa que à luz da actual música que de si deriva – de Vampire Weekend a The Very Best – se prova insuperavelmente densa e enérgica. Uma imperdível lição.
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17 de outubro de 2009
Tom Jobim "Tom Canta Vinicius - Ao Vivo"
Olhando estrelas suspensas sobre um tamarineiro, João Gilberto procurava-a desde criança. Vinicius de Moraes encontrou-a anos depois e para não ter de a trair dedicou-lhe um amor de menino. Entre o sonho de um e o coração de outro esteve Antônio Carlos Jobim, de lápis atrás da orelha, mangas arregaçadas e piano aberto. Foi ele que educou essa ficção chamada bossa nova. 50 anos mais tarde eles ainda lá estão, entre fantasmas, suspendendo a passagem das horas, dias e vidas, mas continuando a inventar o futuro. Cada instante serve para o repetir: como este, de 1990, em que Jobim reduziu a Banda Nova ao essencial e, com o seu filho Paulo, Danilo Caymmi e o casal Paula e Jaques Morelenbaum, apresentou um ciclo de canções que renovava o ensaiado para “Inédito” e lembrava o seu mais emblemático parceiro, desaparecido em 1980. E piano, violão, flauta, voz e violoncelo evocaram os espíritos de Chopin, Satie, Debussy, Ravel e Villa-Lobos, até tudo mergulhar em nostalgia e, por uma vez, dispensar ‘Chega de Saudade’. Mas as outras grandes canções que escreveram juntos entre 1957 e 1963 estão cá – ‘Eu Sei Que Vou Te Amar’, ‘Garota de Ipanema’, ‘A Felicidade’ ou ‘Insensatez’ – em arranjos que, colados a versos do poeta, “voam tão leve” e se perdem “em carícias de água”. Um enlevo de câmara.
9 de outubro de 2009
“Pixinguinha no Cinema”
Primeiro tornaram-se públicas as gravações de João Gilberto em casa de Chico Pereira, depois revelou-se o que, entre amigos, cantava Dolores Duran, e por fim vasculhou-se o baú de um dos primeiros génios da música popular brasileira: Alfredo da Rocha Vianna, aliás Pixinguinha. O que permite concluir que – independentemente do quadro legal – se requalifica em três actos o conceito de arquivo num país pouco dado a honrar o passado. E conseguindo-se, para mais, valorizar testamentos artísticos que se supunham imperturbavelmente acabados. Esta primeira edição da banda-sonora escrita para “Sol Sobre a Lama”, o filme de 1963 de Alex Viany, implica ainda que se olhe para o líder dos Oito Batutas – e criador dos imortais ‘Carinhoso’ e ‘Rosa’ – e reconheça temperança na escrita para sopros (flauta, clarinete, tuba) e elegância na adaptação de ritmos afro-brasileiros a peças próximas da flexibilidade tonal de Villa-Lobos ou Milhaud. Arranca numa quase sinfónica ‘Abertura’ – entre Stravinsky e o Jobim de ‘Sinfonia da Alvorada’ – e termina numa elegia para três violinos e contrabaixo que sugere um Wagner equatorial. O resto é um festim de choros, maxixes e sambas, com primorosas canções (letras de Vinicius de Moraes) aqui regravadas por Elza Soares, CéU ou Jards Macalé. ‘Samba Fúnebre’ traz um dueto de Mariana de Moraes e Marcelo Vianna, netos dos compositores. Um pequeno requinte.
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