Conforme relatado em inúmeras entrevistas e depoimentos ao longo dos anos, Gal e Caetano uniram-se no tempo mítico antes ainda de se cruzarem no histórico. “Domingo”, o LP de 1967 em que assinaram estreia conjunta, estabeleceu em definitivo a contingência factual de se realizarem plenamente na voz dela as canções dele, mas só o entenderá por completo quem aí ouvir algo que não se escuta à primeira: a demonstração de uma pretérita disposição criativa enraizada em audições individuais de João Gilberto. É a esse simbólico e singular predicado que Caetano alude quando no booklet deste novo álbum diz sobre Gal: “ela é ainda a menina que conheci porque gostávamos de bossa nova”. No entanto, a génese do mesmérico radicalismo de “Recanto” não se esgota nesse signo específico. Aliás, na apresentação escrita para a contracapa de “Domingo”, Caetano determinava um espaço comum que surge hoje dramaticamente reiterado, afirmando então: “todas as minhas músicas que apareçam aqui foram feitas junto dela e um pouco por ela também. Ouso considerá-la como parte integrante do meu processo de criação”. Que a revalidação de uma consonância ideológica e artística com pelo menos 45 anos não se traduza numa nostálgica diluição dos seus indispensáveis constituintes é em si mesmo um triunfo, mas que “Recanto” corresponda à ambição de Caetano em “fazer soar um objeto não identificado que tivesse a ver com tudo o que essencialmente somos” (intenção igualmente referida no livrete do CD), é a imperturbável manifestação de uma rara, previdente e inteligente maneira de julgar, no mundo, o lugar de cada um. Para o caso, bastou levar a bom porto uma decisiva resolução visível desde a origem do projecto: a reunião dos paradigmáticos modelos autoral e interpretativo dos dois seria feita num enquadramento cénico estranho a ambos.
“Recanto”, na sua mais melancólica e pragmática dimensão, prolonga o intumescimento praticamente científico que Caetano aplicou aos seus últimos trabalhos de originais, “Cê” (2006) e “Zii e Zie” (2009), transferindo do pós-rock para a electrónica o neurótico campo de acção em que se especula sobre memória e mortalidade, biografia e biologia, mutação e modorra, ética e estética, etc., e estendendo a um conjunto díspar de agentes (de Moreno Veloso e Kassin aos grupos Rabotnik e Duplexx) a influência sobre o resultado final. Mas, sendo um inusitado e libertário terreno de ensaio exterior a Caetano e Gal, desencadeia também percepções de natureza sensorial mais íntima ao administrar poeticamente – com frequência num mesmo tema, como em ‘Recanto Escuro’ – experiências de vida de um e outro narradas na primeira pessoa. Nessa perspectiva, o canto de Gal, que aqui desponta num grau de inédita gravidade, é o que cifra e descodifica um texto feito frequentemente por si, para si, sobre si ou apesar de si. Ou seja, da revelação à transformação dos seus significados, atua sobre uma série de referências pessoais segundo impulsos eminentemente tropicalistas, inscrevendo-se novamente numa área capaz de desafiar convenções, incluindo aquelas associadas à sua própria produção desde meados de 80. O que, numa leitura de atrição, encontra na sua carreira precedente na transição da década de 60 para a de 70 quando a seu lado tinha Rogério Duprat, Lanny Gordin ou Jards Macalé e levou ao palco os espectáculos “Fa-tal” e “A Todo o Vapor”, que em 1972 culminaram no contra-cultural Verão do Píer, ou, mais precisamente, o Verão das ‘dunas de Gal’. Quarenta anos depois a História não se repete nem como tragédia nem como farsa, mas, evocando “Cantar”, o seu LP de 1974 produzido por Caetano, recanta-se, e traz à memória um verso de “Lua Lua Lua Lua”, uma das suas canções: “A minha nossa voz atua sendo silêncio”. Continua a não haver melhor forma de, com a música, inquietar o presente.
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