Numa sintética exposição dos ensinamentos da moral cristã,
em duas epístolas se dirigiu o apóstolo Paulo às Igrejas de Eféso e Colossos. Por
ora, ressalve-se o caráter admoestante de um par de passagens em que exortava à
recitação de “salmos, hinos e cânticos” e aconselhava todo o crente a renunciar
aos “prazeres da carne”, “cantando e celebrando de todo o coração os louvores
do Senhor”. O texto em grego, promulgando a primazia da voz humana no ato de exaltação,
recorria à seguinte metáfora: “ponteando as cordas do coração”, como se no
tórax albergássemos uma harpa. Já no século XIX, o hinário “A Harpa Sagrada”, precisamente
nessa figura de retórica inspirado, teve um tremendo impacto nas mais
conservadoras congregações norte-americanas ao promover uma ardente adesão à
doutrina do Novo Testamento. Publicado em 1844, cedo se reputou como o segundo
livro mais popular nos Estados-Unidos, a seguir à Bíblia. Até hoje, com
predominância no sul do país, as suas leituras permanecem um acontecimento
social, mais participativo do que performativo, envolvendo dezenas de devotos. Muitas
das primeiras gravações desta tradição, nos anos 20 do século passado, possuem
uma reconfortante intimidade familiar, praticamente arcaica quando comparada com
a exuberância desse ‘muro de vozes’ tão mais em voga nos dias que correm, apto
a gerar uma música em que não é fácil penetrar mas face à qual só em vão se oporá
resistência. Notável demonstração disso mesmo acha-se em “I Belong to This
Band: Eighty Five Years of Sacred Harp Recordings”, uma compilação editada pela
Dust-to-Digital.
Dificilmente se dirá que o jazz comunga desta particular
deontologia. Mas quem tenha prestado atenção ao que Alan Lomax escreveu sobre o
assunto estará mais perto de compreender a sua capacidade de sedução. Em 1959, o
folclorista relatou assim os procedimentos da Associação Unitária de Harpa
Sagrada de Fyffe, no Alabama: “São centenas de agricultores, advogados de
província e comerciantes, acompanhados pelas respetivas mulheres e filhos, e,
no entanto, ao cantar, não há aqui vedetas; o ambiente é completamente
democrático. Eis um estilo coral feito à medida de uma nação de
individualistas.” De facto, trata-se de um veículo de veneração ou, até, de um
modo de estreitar vínculos comunitários, mas, como tanto do que teve origem na
Reforma Protestante, por vezes parece ser mais acerca da liberdade de cada um. Talvez
por isso, que não apenas pela expressividade das suas melodias, tenha
igualmente Dave Douglas encontrado razões para abordar, em “Present Joys”,
cinco temas de Harpa Sagrada, acrescentando-lhes um punhado de inéditos nesse
espírito imbuídos. Socorrendo-se de um polímate da estirpe de Caine, surpreende
pela redução: da tumultuosa polifonia a sensíveis cânones a dois. Mas, por
outro lado, tão dogmático material torna-se às mãos dos improvisadores
acentuadamente sincopado e cromático, distanciando-se da sua existência
devocional e aproximando-se, ocasionalmente por intermédio de glosas, do mais
primitivo evangelho do jazz, de êxtases profanos e silêncios solenes.
Supõe-se que nada tenha a ver com isto “Riverside”, uma
homenagem ao mais caracteristicamente idiomático em Jimmy Giuffre concebida essencialmente
a partir de originais de Douglas e Chet Doxas (notem-se as credenciais de
Swallow neste contexto), mas basta ouvi-lo para se identificar uma interseção
de bucolismo e cosmopolitismo em tudo semelhante a essoutra de que se falava, obedecendo
a uma arejada gestão do espaço e à contínua ilustração de um fascinante
complexo de arquetípicas ações em que se harmoniza de forma panorâmica e se
imprimem ritmos de atrativa lassidão. Lembrando a escritura citada, o
trompetista está num e noutro disco de todo o coração.
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