Percorrem-se as
ruas de Essaouira e adivinham-se sortilégios a cada esquina. Mais ainda quando
a noite cai e a bruma atlântica rende nas sentinelas o fumeiro dos grelhadores ambulantes
e arrefece os vapores dos banhos turcos. No beco que conduz aos escombros da
igreja franciscana, paredes-meias com o velho consulado português, um grupo de
turistas entrevê espetros, que efémeros clarões enchem de luz, e hesita, até
que se atrapalha ao dar conta de estar a flagrar, iluminadas a telemóvel, beijoquices
entre rapazes e raparigas do primeiro ciclo. Num relato de viagens por
Marrocos, contemporâneo de “A Idade da Inocência”, Edith Wharton falava numa
“terra de enigmas e neblinas”, e, até hoje, predomina no espírito de quem anda
pela cidade essa ideia de negociação com o inexplicável. Mas, em certa medida, todos
se iludem. E instantes há em que o herbalista, o prateiro, o comerciante de
pedra alúmen, o estampador de t-shirts de Jimi Hendrix ou o guardião da
biblioteca de Dar Souiri não são mais do que mistificações em mentes
ocidentais. Dir-se-ia que ao longo do “Festival Gnaoua” – que acabou de assinalar
a sua 17ª edição entre 12 e 15 de junho – algo de semelhante, como um atentado
à lógica, se dependura de faces alemãs, britânicas, escandinavas. Pois, entre
os europeus, despertam instintos piedosos nos que há muito largaram a religião
e impõem-se impulsos sentimentais nos que, acima de tudo, se orgulham de ser práticos.
É quase a substituição de um lugar-comum por outro, mas, durante os concertos
de maâlems marroquinos, como nas
cerimónias que marcam a entrada em sociedades secretas, são esses, os que nada sabem
de si mesmos, os únicos agentes ao serviço do mistério.
Claro que um certame
que tem como cabeças de cartaz Didier Lockwood, Ibrahim Maalouf ou Marcus Miller se
dá bem enquanto sede para voláteis conceções de identidade. Nas palavras da sua
diretora, Neila Tazi Abdi, “a originalidade desta música tem equivalência em
modelos inovadores de pensar a vida em sociedade: já não persistem antagonismos
entre o moderno e o ancestral.” Talvez por isso se promovam diálogos com músicos
berberes: Lockwood também atuou com Hassan Boussou, Miller com Mustapha Baqbou,
as luminárias da fusão brandindo os seus instrumentos como cimitarras num interminável
desfile de expressões supérfluas. A iniciativa – considera a organização – “demonstra
a abertura e generosidade dos praticantes gnaoua”,
mas acaba por ser limitativa: artistas internacionais são convocados pela sua
propensão natural em estimular híbridos culturais e músicos locais têm de
evidenciar, por vezes de modo francamente artificial, a latente universalidade naquilo
que fazem. Seja como for, as colaborações em palco vão de encontro ao tema
discutido em mesas-redondas: “A áfrica que aí vem”. Não será um paradoxo menor
que os melhores concertos do festival tenham vindo pela mão daqueles que não se
cansam de repetir o venerado truísmo da tradição: ‘o meu futuro é o meu
passado’. E que tenha Bassekou Kouyaté afiançado que do amanhã ninguém sabe.
Como disse ao Expresso: “Desde o fim do século XVIII que as caravanas atravessam
o deserto para aqui chegar; neste momento, na outra ponta da estrada, no Mali, ainda
estão os fundamentalistas. É bom que se pense nisso.”
Na noite de 12, a entrada
em cena de El Khadir Chawqi – a malhar no qraqeb,
espécie de castanhola de metal que evoca um cavalo a galope – foi consonante
com o que se ouve nos acessos a Essaouira: o telintar de porta-chaves em
dezenas de mãos que, acenando-os para os carros que passam, assim apregoam casas
e quartos para alugar. Aos poucos, sentados em meia-lua, os membros do coletivo
foram contraindo a obrigação do público e cada salva de palmas era uma genuflexão.
De seguida, já passava da meia-noite, vinha a trupe de Benachir Bouchabchoub e
logo se provava o que outros confirmariam: que basta um par de notas tocadas no
gimbri para se distinguir um mestre gnaoua. Em frente aos músicos, de pé,
até às duas e meia da manhã, um vidente, exorcista, curandeiro e hipnotizador:
queimando incenso, salpicando profilaticamente a assistência com uma infusão de
rosas, sorrindo beatificamente, até que a música só tem interesse pela maneira
em que o seu corpo a veicula ou, melhor, como se ele fosse uma aparição gerada
por quem a toca e a ouve. A confraria Hmadcha, ao ar livre, entregou-se
igualmente à dança extática e a rituais de possessão: unidos pelo ombro, os
seus cantores enlevavam-se e, de concreto, só o seu olhar, esculpindo o nevoeiro
que conquistava o torreão de Borj Bab Marrakech. Pela madrugada de 13 para 14
chegou Hamid El Kasri, porventura o mais popular dos gnaoua, cantando em árabe, pregando e exultando, com um tom
declamatório, tão estoico quanto cómico. De 14 para 15, a irmandade sufi
Issaoua d’Essaouira, em que cada oração é uma aguarela, cores suaves a fluir em
papel, texturas desprovidas de contornos. Invocando-se, transmitiram a quem estava
a seu lado tudo o que tinha de saber para passar graciosamente pela vida. Para
Abdi, é isto que prova o poder da música: “Como dizia Mandela, ‘a música
consegue desafiar tudo’.”
Curiosamente,
também a 20ª edição do “Festival de Fez – Músicas Sacras do Mundo” decorreu, entre
13 e 21 de junho, sob a égide de Nelson Mandela, conquanto estivesse
tematicamente subordinada ao épico persa “Conferência dos Pássaros”, de Farid
ud-Dîn Attâr. A parábola do poema contagiou a maliana Rokia Traoré e a boliviana Luzmila
Carpio, que se apresentaram sob a azinheira do Museu Batha sorrindo aos
passarinhos. O público tinha um arrepio sobrenatural sempre que um chilreio
rimava com a música, mas um olhar atento revelava uma não menos alegórica luta
entre um estorninho e um casal de rolas. Mas entre palestras e
um concerto de homenagem, foi do antigo presidente sul-africano, e, por seu
intermédio, de perdão, que um batalhão de académicos, intelectuais, ministros, diplomatas,
escritores ou jornalistas mais falou. Faouzi Skali, fundador do festival, há
muito afirmou ter encontrado motivação nos discursos maniqueístas que escoraram
a Guerra do Golfo, aos quais desejava contrapor um conjunto de atividades que
realçassem “valores humanistas e espirituais”. Em 93, pouco antes da edição
inaugural, o próprio rei Hassan II declarava ser “necessário demonstrar que o
Mediterrâneo se pode tornar uma zona de solidariedade e equilíbrio.” Vinte anos
depois, essa retórica filantrópica cobre e redime a cidade. Debate-se música
enquanto propedêutica da tolerância, idealizam-se as relações humanas,
procura-se uma “alma para a globalização”. Mas nada se diz sobre a marcha da
ISIS pelo Iraque, a guerra-civil na Síria, os conflitos tribais no Quénia, a
ação do Boko Haram na Nigéria, os raptos em Israel, os campos de refugiados no
Sara Ocidental.
É óbvio que entre
Fez e Essaouira vai um mundo de distância. Para trás, uma turba de mochileiros indecisa
entre o sol e a arte, tornozelos com braceletes de sal, dunas cor de mel, o
hálito a açafrão e argão na boca do vento alísio, aquelas quatro parisienses
que, na praia, aguardam um novo dia, deixando na areia qualquer coisa parecida
com o que escreveu Olympe Audouard em “Voyage à Travers Mes Souvenirs”: “A
minha vida tem duas partes distintas: uma, sombria e dolorosa, passada em
França; a outra, luminosa e alegre, passada a viajar.” Em Fez, pode, ao longe,
a almedina assemelhar-se ao caixote em que o filho de um gigante guarda os
legos, mas, de perto, à sombra das madraças, dos palacetes, do jardim Jnan Sbil
ou da mesquita de al-Qarawiyyin, impressiona pela fortaleza de absolutismo que um
dia foi. Comparados com os outros, mais a sul, os seus visitantes são
transparências de seda e musselina, expatriados fantasmas da Zona Internacional.
No dealbar da independência marroquina, Paul Bowles aí estabeleceu “The
Spider’s House”: “Quando aqui cheguei esta terra era pura, com música, dança e
magia pelas ruas. Agora, tudo acabou. Até a religião. Em pouco tempo este país
será como qualquer outra nação muçulmana: mais um bairro de lata europeu cheio
de pobreza e ódio.” Podia estar a falar acerca do efeito do turismo de massas, hoje
o reverso da medalha à nomeação de Património Mundial da Humanidade pela
UNESCO.
Jordi Savall, na tarde de
17, toca com Driss El Maloumi, Houcin Baqir e Hakan Güngör, e fala de uma
canção de embalar que durante séculos pôs num mesmo berço o sul da europa e o
norte de áfrica, prova, diz, “de que há sempre mais a unir-nos do que a
separar-nos.” Na noite de 16, o chinês Wang-Li menciona vidas passadas e cerra a
vista como se tivesse o sol a bater-lhe nos olhos. É pouco mais que uma aragem,
a sua música. Perto de si, Cheikh Didi, um homem pequeno, de ar desconfiado, chegado
do Atlas, invocando um mundo que desejaria tornar eterno. Também as cazaques Ulzhan Baibussynova e Raushan
Urazbayeva e a uzbeque Nodira Pirmatova trouxeram histórias das estepes, onde o
vento e o tempo são imemoriais. Na noite de 17, o sexteto de Tomatito espantou
os males de uma comitiva espanhola a braços com o Mundial e a sucessão, tocando
com tal arrebatamento que cada nota parecia uma prenda para os seus patrícios.
Juntou-se-lhe Omar Bouzmaazought, cantando em tamazight e tocando o loutar,
e ainda mais se patenteou a técnica digressiva e delicada do andaluz, ciente de
que um guitarrista de flamenco atua como um médico numa operação: quanto mais mexe,
mais o paciente grita. Sutileza desperdiçada por Zakir Hussain e Rakesh
Chaurasia, quando, após duetos em que se diria ser um só o coração que batia,
passaram do extraordinário ao vulgar, transformando a música clássica indiana
numa fábrica de imitações em que cabiam toques de telemóvel, a “Pequena Música
Noturna”, a “Carta a Elisa” ou o tema de “O Bom, o Mau e o Vilão”. Na noite de
15, reunia-se uma multidão em Bab Al Makina para o espetáculo de Johnny Clegg e
Youssou N’Dour: o primeiro, afeiçoado a gestos obsoletos como uma dona-de-casa
aos seus bibelôs, o segundo, irrepreensível, com uma banda de 15 elementos, mas
capaz de parar a rotação do planeta ao erguer sozinho a voz e apontando-a em
direção àquele céu que, disse-o também Bowles, “esconde a noite e nos protege
do terror que por trás dela se oculta.” Não poderia haver melhor local para o
relembrar.
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