1 de novembro de 2019

Scarlatti: Sonates (Mirare, 2019)


As sonatas de Domenico Scarlatti são de tal forma reconstituintes, que, em “Memorial do Convento”, José Saramago lhes atribui propriedades curativas: “Durante uma semana, todos os dias, (...) o músico foi tocar duas, três horas, até que Blimunda teve forças para levantar-se, sentava-se ao pé do Cravo, pálida ainda, rodeada de música como se mergulhasse num profundo mar, diremos nós, que ela nunca por aí navegou. (...) Depois, a saúde voltou depressa.” Bem, ficção histórica por ficção histórica, mais vale imaginar Maria Bárbara de Bragança a voltar uma e outra vez a essas folhas soltas que conhecia tão bem quanto as páginas de um diário até conseguir mitigar a dor e adoçar a sina. Foi ela a mais dedicada das discípulas do compositor e, por sinal, aquela a que Scarlatti mais deveu o seu favor – talvez por isso, pouco antes de morrer, quando se pôs a coligir as sonatas que compôs ao serviço da corte portuguesa, primeiro, e da corte espanhola, depois, para as oferecer a Maria Bárbara, não tenha, ao que tudo indica, descartado nenhuma, juntando num só compêndio 555 peças, como quem diz que, do que somos, bem ou mal, nada se joga fora.

Nem se imagina, aliás, pessoa mais indicada para as compreender: trata-se de mais de meio milhar de obras saídas do mesmo molde, todas de um andamento apenas e de estrutura bipartida – tão certo como a noite segue ao dia, dir-se-ia. No entanto, para mal dos nossos pecados, basta uma amostra qualquer, como a deste sexto volume da integral de Hantaï (que voa da K.18 para a K.544 e da K.502 para a K.69 como quem vê de repente a vida a passar-lhe à frente), e lá temos de regressar a Saramago, que quase chegou ao cerne da questão: “[Scarlatti] Sentou-se e começou a tocar, branda, suave música que mal ousava desprender-se das cordas feridas de leve, vibrações subtis de inseto alado que, imóvel, paira, e de súbito passa de uma altura a outra, acima, abaixo, não tem isto nada que ver com os movimentos dos dedos sobre as teclas, como se uns aos outros se andassem perseguindo, não é deles que nasce a música, como poderia ser se o teclado tem uma primeira tecla e uma última tecla e a música não tem fim nem princípio.” Efetivamente acrobático, Scarlatti concentra aqui inclusivamente a vida que nem ele, nem muito menos Maria Bárbara viveu: com a volatilidade do vilancico (que João V. proibiu), a finta do fandango, e outros mambos mais, que, como sugeriu Ralph Kirkpatrick, em biografia, fazem os executantes evocar aqueles “selvagens acordes que [no flamenco] ameaçam arrancar as cordas [da guitarra]” e espantar os males de quem os escuta. Olé!

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