Que Marshall McLuhan não cunhou a expressão “aldeia global” para que volvidos 50 anos se vendessem entradas na Dubailand será um facto. Mas talvez tivesse deixado a teoria amadurecer na gaveta se supusesse que a grande questão sobre tecnologia na mente das crianças da Era-Magalhães viria a ser: ‘antes da Internet, como se procurava no Google?’. Terá de se lhe perdoar a católica tendência de aspirar ao infinito e nele identificar a bondade. Porque com maiores ou menores revoluções no acesso ao conhecimento e à informação, o Mundo, naquilo que realmente conta, não mudou muito desde que há um século Mark Twain seguiu a linha do Equador tropeçando em aforismos como o de que a verdade – por não ter de se limitar ao possível – é mais estranha que a ficção.
A Sublime Frequencies lembra isto e muito mais. O impacto daquilo que faz tem hoje o efeito de se sugerir que o Mundo real só começa depois de terminada a última página de resultados num motor de pesquisa. Isso, porque contraria o discurso de homogeneização cultural e determinismo antropológico tantas vezes coincidente entre os mais activos agentes na ‘música do mundo’ e qualquer campanha publicitária que garanta férias de sonho. Mais concretamente, descarta um trunfo que de tão jogado esgotou já a capacidade de surpreender: o da autenticidade. E assim traz à memória a declaração de Edgar Morin sobre o Cinéma Vérité, de que, das duas uma, através dele se pretende revelar a verdade ou colocar a problemática da verdade. É uma estratégia que evita categorizações de mercado sem se socorrer da ingenuidade optimista dos manifestos.
Desde 2003 que – estabelecida então por Alan Bishop com o seu irmão Richard Bishop e o videasta Hisham Mayet– desafia convenções. Mantendo-nos na metáfora do Cinema, poderíamos, para a qualificar, evocar as ‘etnoficções’ de Jean Rouch, mas, na prática, a editora encontrou um meio em tudo mais alegórico para a compreensão das suas construções: a rádio. No seu catálogo, encontramos em “Radio Java”, “Radio Morocco”, “Radio Palestine”, “Radio India” ou “Radio Thailand” uma série com a ambição de, numa concentração quase hiper-realista, representar um certo tempo e um certo espaço. São gravações in situ de transmissões em onda curta – algumas com mais de 20 anos e sofrendo todo o tipo de manipulações, cortes e colagens – pelas quais se adivinha um clamor de vozes, música, anúncios e estática na cacofonia própria do que vive em simultâneo. É uma apropriação de memórias tanto quanto a sua invenção e a sua partilha. E, no limite, uma alteração de paradigma na mediação etnomusicológica, capaz de mostrar culturas locais fervilhantes, em que acordes de uma canção dos Rolling Stones incluídos no repertório de uma banda de garagem tailandesa não causam mais espanto que uma batida de bossa nova evadindo-se do éter palestino. Daí que sugestões de imperialismo cultural na sua acção se remetam para a condição de preconceito de quem tem as lentes postas do avesso.
A sua perspectiva, como era a das bem-intencionadas Folkways, Nonesuch Explorer Series ou Chant du Monde, combina a diletante inclinação para o exótico do viajante com a propensão para o trabalho exaustivo do arquivista. E é inédito o propósito de preservar a diversidade num conjunto de manifestações artísticas muitas vezes contraditórias entre si e, regra geral, resultantes de embates estéticos com o Ocidente. Porque, sem condescendência moral, não hierarquiza a produção com que se cruza. Valida compilações como “Ethnic Minority Music of Northeast Cambodia” e antologias de características imprevisíveis como “Princess Nicotine: Folk and Pop Music of Myanmar (Burma)”. Pelo caminho, revela o que mais ninguém tem registado de forma abrangente e sistemática: a pop urbana do Iraque, da Birmânia, da Indonésia ou da Tailândia. A consequência da sua audição é devastadora e obriga a uma instantânea relativização da imagem tradicional de cada país. E não será por acaso que se sucederam volumes consagrados à Coreia do Norte, Iraque ou Síria no preciso momento em que o valor do ‘mal’ impregnava discursos políticos. Contrariar a engenharia social levada a cabo por governos e grupos de pressão evidencia ainda uma herética dimensão eminentemente biográfica: Alan e Richard são de origem libanesa e, durante mais de duas décadas, formaram, com o já falecido Charles Gocher, os Sun City Girls, banda capaz de reunir resíduos musicais de todo o Mundo numa actuação, num disco, num tema. Para alguns, a Sublime Frequencies servirá para revelar a fundação de um grupo que parecia saber tudo aquilo que aos seus fãs era interdito.
Seria uma questão de tempo até que a contemporaneidade se impusesse na agenda da editora. Fiel aos seus princípios, chega graças à descoberta de nomes tão fascinantes e enigmáticos quanto os que nesta sua digressão traz a Lisboa. O Group Doueh, proveniente do Sahara ocidental, evoca o funk e o rock psicadélico mas com instrumentos cheios de areia e história, crus, secos e fossilizados, sacudidos pelas vozes e pela guitarra num arremesso sensual que sintetiza devoção e irredutível independência desde a costa da Mauritânia até aos ecos de Hendrix pelas margens do Mississippi. Omar Souleyman é sírio e propõe algo de radicalmente diferente: entre percussionistas proto-Miami bass e um teclista a lembrar um Tomita-sob-ácidos, canta e fala em vertigem sobre um fundo sonoro pimbadélia-em-esteróides que faria os sonhos arábicos de Kanye West. A música do Mundo não fica mais estranha e real do que isto.
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