12 de setembro de 2009

Entrevista a Alex Ross, autor de "O Resto é Ruído - À Escuta do Século XX"


Quando em 2007 viu ser publicado “The Rest Is Noise: Listening To The Twentieth Century” Alex Ross não imaginava que iria terminar o ano na lista dos Dez Mais do New York Times, a ser citado para o Pulitzer, nomeado e premiado por um punhado de instituições de relevo – a Fundação MacArthur atribuiu-lhe em 2008 o notável “Genius Grant” no valor de 500.000 dólares – e, muito menos, com um modesto bestseller em mãos. E nem por um instante formava a hipótese de o ver traduzido e editado em países dos quais não mencionava um único compositor – o caso de Portugal, a que chega agora às livrarias com o título “O Resto É Ruído: À Escuta do Século XX”.

O crítico do The New Yorker vislumbra o custo de tanta notoriedade e revela-se perplexo face à tendencial glorificação mediática de que dependem as indústrias culturais. Porque se poderá confundir o essencial da sua mensagem: de que este é um selectivo ponto de partida para a descoberta e compreensão da música erudita do século XX, consciente das suas enormes lacunas e sujeito não só à interpretação de cada leitor como à sua reacção. Por isso nada se ganha em discutir aquilo em que não se tornou: numa enciclopédia. Até porque há omissões para todos os desgostos (além dos portugueses estão ausentes Mompou, Piazzolla, Maderna, Marshall, Siegmeister, Blacher, Ginastera, Guerra-Peixe, Sallinen, Kancheli, Silvestrov, Satoh, Ifukube, Pavlova ou Tüür). Mas, na verdade, tal não lhe belisca a leitura. Nas suas 550 páginas atinge-se um raro equilíbrio entre biografia, crítica e análise histórica, desenvolvem-se teses de surpreendente sagacidade, delimita-se um espaço permeável ao anedótico e ao polémico sem uma imposição partidária, mantém-se um clarividente estilo narrativo de profunda qualidade literária capaz de se socorrer de adjectivação tão subtil quão desarmante, descrevem-se obras num inesgotável manancial de metáforas que pulsam expressivamente nas entrelinhas, discorre-se extensivamente sobre tangentes como a música para filmes, a música para desenhos animados, o jazz e a música popular e – o que não será o menor dos seus méritos – expõem-se raciocínios com uma fluidez e domínio formal que por vezes contrasta com o retrato de um fragmentado século musical de revoluções, contra-revoluções, radicalismo, alianças, traições e sucessivos colapsos.

O título do seu livro implica um mergulho no som – mais até do que na música propriamente dita. Quando é que decidiu tentar compreender e organizar tudo o que ouvia?
Houve efectivamente uma altura da minha vida em que me senti imerso em som: os anos em Harvard. Estudava História e Literatura e trabalhava na Rádio universitária. A nossa biblioteca devia ter qualquer coisa como 25.000 discos e comecei a explorar a sério o repertório do século XX. Simultaneamente ouvia pop e o jazz de Cecil Taylor ou Anthony Braxton. E o que me entusiasmava era compreender como as histórias se cruzavam, isto é, de como a música que ouvia à noite se relacionava directamente com os factos e acontecimentos que estudava durante o dia. Recordo o encontro com a “Salome”, de Richard Strauss – tão excitante, imperfeita e repleta de sons espantosos. Fiquei fascinado e quis mergulhar na obra – até que ela me abriu a porta para um universo de dissonância, novas possibilidades e texturas complexas. Senti a vertigem de me ver arrastado para um novo mundo.

Vertigem essa que se prolonga pelo livro. E tornou os factos permeáveis a uma perspectiva individual sem lhe imprimir uma dimensão ideológica. Ainda assim, quais os argumentos fundamentais que queria transmitir?
Colocar a música num contexto social, cultural e político abrangente. Não queria apenas falar da vida dos compositores ou discutir as suas obras, mas mostrar que ela se relacionava directamente com o seu tempo. E havia um conjunto de histórias tão dramáticas que pediam para ser contadas: como o caso de Shostakovich durante o regime soviético, o de Copland nos Estados Unidos ou os de Eisler, Hindemith e Weill no período nazi. É difícil manter essa perspectiva quando se trata de explicar a origem de determinado estilo, mas fiz questão em não encarar a música como um mundo abstracto, fechado e auto-suficiente. Quis ainda incluir o maior número de estéticas possível, evitando a habitual divisão entre conservadores e revolucionários.

Até porque essa divisão acaba por excluir quem que não foi ‘apenas’ um inovador – ou pelo menos não o foi de forma ostensiva – como Britten, Messiaen ou Sibelius?
E que acabam muitas vezes por se ver afastados da discussão à luz desta distinção ideológica ou analisados só nessa perspectiva. Quis mostrar que se podia discuti-los sem forçar uma leitura dialéctica. Na Universidade passava um dia a ouvir Britten e outro Xenakis, por exemplo, e era incrível reconhecer as suas personalidades através das obras, a sua singularidade e a sua voz. E identificava-as não por terem escolhido este ou aquele estilo mas sim por criarem algo de único. Para retomar a pergunta diria que outro aspecto chave na elaboração do livro era o de estudar a relação entre música clássica e música popular. É um tema recorrente do livro. Não o mais importante mas um que me fascina profundamente.

Claro que não se poderá falar dos temas recorrentes no livro sem se mencionar o “Doutor Fausto”. O que o fez identificar-se de forma tão forte com a personagem?
Li pela primeira vez o Fausto do Thomas Mann aos dezoito anos. Foi na mesma altura em que começava a prestar atenção a Schoenberg – e o paralelismo entre as minhas sensações e aquilo que se passava no próprio livro impressionou-me ao ponto de – talvez aí – ter começado a pensar numa história da música sob a sua influência. Mann entrelaça a vida de um compositor ficcional com o trágico destino do seu país. Enfim, não quero parecer simplista – porque estas relações foram extremamente complexas – mas quis evocar várias vezes esta ideia do compositor envolvido em obscuros processos históricos.

Funciona quase como um livro dentro do livro. Serve de metáfora para Strauss ou Shostakovich e parece prolongar-se mesmo quando escreve sobre Stockhausen e Boulez.
Decidi manter a metáfora a pairar sobre o livro – essa ideia de procura incessante, do criador a desejar atingir novas esferas de conhecimento. Até porque quis manter viva a ideia de que tudo tem um custo. Mas nunca chego a sugerir relações directas. Claro que olhando para o caso de Strauss há de facto ali – na sua relação ambígua com Hitler – qualquer coisa de ‘pacto com o diabo’. Ou na ligação de Shostakovich a Estaline. Mas a politização da música é tão fácil.

Estamos a um mundo de distância desse tempo?
Sim. E por mais que se desprezem os sistemas de então ficamos nostálgicos ao reconhecer a importância que os compositores chegaram a ter. Há hoje imensas obras a expressar convicções políticas, mas não há muita gente a ouvi-las. Um dos últimos casos de um compositor com uma dimensão política de relevo foi o de Bernstein. Ainda há pouco encontrei a sua ficha do FBI e nela figuram transcrições de telefonemas entre J. Edgar Hoover e Richard Nixon em que o então presidente lhe chamava “filho da mãe”. Não estou a ver que nos últimos anos George W. Bush ou Dick Cheney se tenham preocupado minimamente com o que John Adams andava a fazer.

O que nos leva à questão do envolvimento actual dos Estados com as artes.
Tem de se perceber que entre a Europa e os Estados Unidos a situação é radicalmente diferente. Aqui, as instituições que mantêm viva a cultura das orquestras e das salas são na sua esmagadora maioria privadas. O orçamento do Estado para as artes é insignificante – o que não vejo a alterar-se. Porque, pese embora a propensão para a sua institucionalização, prefiro imaginar-me num mundo em que o Estado subsidia a criação. Claro que, por outro lado, esta anarquia do sistema norte-americano pode conduzir a resultados muito curiosos. Há inúmeros compositores que se revelaram dramaticamente inventivos em momentos de dificuldades. E é também pelo facto de não haver uma tendência dominante – aquela apoiada pelo Estado, por exemplo – que apareceram aqui não-alinhados como Henry Cowell, Charles Ives, Lou Harrison ou John Cage, presenças maravilhosamente estranhas quando se analisam as suas contribuições específicas para a música do século.

E cuja importância – talvez até à década de 50 – permanece subvalorizada?
Completamente. Há tantas figuras brilhantes que são como histórias incompletas. Dedico três capítulos à música norte-americana e só falo de falhanços: o primeiro será a incapacidade em apreciar e nutrir a contribuição de músicos afro-americanos para a música clássica, o segundo trata dessa inépcia em desenvolver um sistema de promoção das artes e o terceiro descreve como os compositores tiveram de evoluir fora do sistema. É talvez o mais optimista porque acaba com os minimalistas, que são conhecidos na Europa, a par talvez de Cage ou Elliott Carter.

Mas raramente se fala de Harry Partch ou Henry Flynt, que provaram que o isolamento se tornou também numa fonte de poder. A pintura reconhece os seus “outsider artists” mas a música clássica ignora os seus “outsider composers”?
Impressiona-me como as personalidades mais ousadas e provocadoras das artes visuais são mais tarde ou mais cedo reconhecidas pelo grande público. O Morton Feldman perguntou um dia: “o que aconteceria se olhássemos para a música enquanto arte?”. Parece uma frase absurda mas na verdade são poucos os exemplos de compositores contemporâneos considerados dessa maneira – enquanto artistas com ideias poderosas e a reflectir algo de importante para a sociedade. Parece que ficámos presos aos estereótipos com que se caracterizavam os compositores nos séculos dezoito ou dezanove.

O que faz com que muitas vezes se ignorem nomes exteriores à tradição europeia. Uma tendência que terá forçosamente de mudar?
Claro. Tive imensos problemas em concluir o livro porque me parecia não estar a reflectir essa realidade: a da música clássica se ter globalizado. Principalmente desde 1975 ou 1980, um período em relação ao qual não é fácil ter uma perspectiva histórica. E que é igualmente muito marcado por mulheres, como Ustvolskaya. Era impossível citar toda a gente sem que o último capítulo se transformasse numa lista interminável. Mas basta pensar em Unsuk Chin, Kaija Saariaho ou Osvaldo Golijov para se concluir que as obras mais interessantes não vão aparecer de onde se espera.

Porque se vive para lá de um tempo de síntese? Ou seja, aquela leitura linear, cronológica e baseada no progresso pode ser abandonada?
Essa teleologia da música moderna tem imensas limitações. Mas assim que a ignoramos surge o caos – uma anarquia de vozes em competição, um sentimento de total ecletismo e desorientação. Eu não rejeito essa narrativa de progresso, mas um dos objectivos do livro será sempre o de alertar para a inexistência de um sentido único e para essa ideia de que uma música interessa mais do que outra. Não há um cânone exclusivo. Julgo que é hoje possível mantermos uma perspectiva que aceite contradições – as obras exigem-no. E acredito no novo. Mesmo se é óbvio que há ainda tanto a fazer com esta violenta variedade de sons a que fomos expostos nos últimos 109 anos.

Por isso tantos compositores refletem sobre uma música para além da música, ou pelo menos – como Valentin Silvestrov – no seu fim?
Há obviamente quem se tenha sentido a chegar no fim desta história. Lembro-me de certas peças de Schnittke ou das atmosferas pós-apocalípticas de Nono ou Lachenmann. Mas depois olho para Gershwin, Bernstein, Janácek, Bartók ou Steve Reich, pessoas que à sua maneira transmitiram esta ideia de que a música pode sempre começar de novo. E acredito que é isso que vai acontecer com uma nova geração de compositores. Aliás, quis chegar ao maior número de pessoas possível porque, comparando, quantas pessoas lêem literatura contemporânea e quantas ouvem música contemporânea? Quantas vão a exposições e ao cinema e quantas vão a estreias de novas óperas ou sinfonias? Se não criarmos públicos estes compositores não terão futuro.

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