Paris rendia-se ao jazz. Outra vez. E
representantes de um grupo com o habitat
natural ameaçado – como Louis Armstrong, Duke Ellington, Count Basie, Miles
Davis, Dizzy Gillespie ou John Coltrane – encontravam um segundo lar. A câmara de
Jean-Pierre Leloir captou as férias de uns, o exílio de outros, as dores e as
delícias de todos, e dia 26 é inaugurada em Lisboa uma exposição que evoca o
período. Pretexto para a apresentação de um livro dedicado ao fotógrafo francês
e de uma nova coleção de discos por si inspirada.
John Coltrane está sozinho no seu
quarto de hotel, em Juan-les-Pins. É sábado. 24 de julho de 1965, para ser
exato. Viajava com Jimmy Garrison, Elvin Jones e McCoy Tyner, que talvez passeassem
junto à praia ou brincassem com a filha de Nina Simone pela piscina e prestassem atenção a ‘(I Can’t Get No)
Satisfaction’, em repetição permanente na rádio. Planeava um par de concertos
para o festival internacional de jazz da cidade, então na quinta edição, e, quiçá
não o soubesse, mas, preparava-se igualmente para perturbar a prolongada
placidez da Côte d’Azur. Tinha ouvido uma frase de Martin Luther King, Jr.,
antes de apanhar o avião para Nice (“Tive pesadelos, sim, mas, repito-vos, mais
uma vez, que não perdi a fé: eu ainda tenho um sonho”), e é provável que a sentisse
como sua. É, também, possível que esquadrinhasse a consciência em busca de resposta
para a questão que mais vezes surgia em conferências de imprensa, quando jornalistas
franceses lhe tentavam arrancar um juízo acerca da Guerra do Vietname. Seja como
for, a verdade é que viria a preterir do alinhamento da sua segunda
apresentação dessa semana os temas mais populares no seu repertório, ‘Naima’ e
‘My Favorite Things’, a favor da execução na íntegra de “A Love Supreme”. Na
plateia, foi como se os Alpes Marítimos ganhassem novo cume, ao contrário das
ondas de choque que, na mesma altura, bem longe dali, Dylan soltava entre o
público do Newport Folk Festival ao subir ao palco de guitarra elétrica na mão.
Será que, como Eric Dolphy lhe tentou fazer ver, havia na Europa uma maior
tolerância para a vanguarda? Dolphy. A memória daquele que tanto desejava ter a
seu lado era fulminante. Tinha morrido há onze meses, em Berlim, em agonia num
corredor de hospital. A ironia. Ele, que agora, nesta tarde de sábado, estava de
novo à sua frente, num retrato que Jean-Pierre Leloir lhe tinha vindo entregar.
Sem desviar o olhar do amigo, Coltrane agradece, pousa a efígie na escrivaninha,
pega no saxofone e começa a tocar. Sem hesitar, Leloir tira-lhe uma fotografia.
“Coltrane toca para Dolphy”, explica
Marion Leloir, na “Jazz Magazine” de dezembro. “A foto [que lhe tinha acabado
de ser oferecida] toma parte instantânea de um momento íntimo”, lembra, confirmando
que a imagem que Jean-Pierre na ocasião fixou estava entre as que ele mais
gostava no seu acervo. Marion é entrevistada a propósito do lançamento de “Jazz
Images”, um álbum de 168 páginas (com um CD de 18 temas como bónus) organizado
por Gerardo Cañellas e Jordi Soley a partir do arquivo de Jean-Pierre Leloir
(1931-2010). A história que se esconde por trás da foto ilustra aquilo que, no
livro, Quincy Jones adianta em prefácio: “Não tiramos fotografias só para
preservar uma imagem mas também para conservar as histórias que a acompanham.
Mais que um fotógrafo, Jean-Pierre Leloir foi um historiador.” E é uma entre as
muitas que Marion terá para contar na próxima quarta-feira, dia 26, pelas
18h30, quando, em Lisboa, na galeria da Fnac Chiado, se inaugurar uma exposição
consagrada à obra do pai.
Leloir foi um dedicado cronista das
artes de palco. Viria a tornar-se no fotógrafo predileto de Brel e a colaborar
com a “Rock & Folk”, para a qual imortalizou gente como Dylan, Hendrix e
Zappa e membros dos Stones, dos Floyd ou dos Zeppelin, mas, antes de mais, daria
nas vistas ao retratar músicos de jazz – lá está ele no elegantíssimo “Seeing
Jazz”, representado junto a vultos na especialidade como William Claxton, Herman
Leonard e William Gottlieb. Aliás, foi um período em que a indústria
fonográfica não abdicava dos seus serviços (da Vogue à Philips, da Barclay à
Brunswick, da Columbia à Decca, não houve chancela a operar em França que não tivesse
utilizado fotos de Leloir nas suas edições). É em nome dessa ligação,
presume-se, que se dá à estampa a revisionista Jazz Images: uma coleção de clássicos
com novas capas alimentadas pelos seus negativos (“Kind of Blue”, “Giant
Steps”, “Waltz for Debby”, “Moanin’”, “Time Out”, “Saxophone Colossus”, “Jazz
Samba”, “Little Girl Blue”, etc.).
Mas Leloir distinguia-se por
transcender o cânone industrial. Em “Jazz Images” encontramo-lo nos bastidores
de salas de concerto (com Louis Armstrong e Donald Byrd) e festivais de verão
(com Count Basie e Ray Charles), por pistas de aeroporto (com Billie Holiday e Thelonious
Monk), praias, docas e piscinas (com Dizzy Gillespie, Ella Fitzgerald e Nina
Simone), pelas ruas (com Don Cherry e Bud Powell) e em casa (com Quincy Jones e
Sarah Vaughan). Sempre do lado daqueles que iludiam realidades locais marcadas
pelo preconceito e encontravam em França o respeito que há muito sabiam
merecer. Isso e a dignidade que advém de oportunidades de labor e lazer com que
nos EUA nem sonhavam. Foi uma espécie de fim de semana prolongado para os que sentiam
na pele aquilo que em “Paris Blues”, a certa altura, afirma a personagem
interpretada por Sidney Poitier (“Ouve, aqui ninguém diz Eddie Cook, músico
negro; dizem o músico Eddie Cook, ponto final”) e que em “Round Midnight” expressa
Dale: que se muda para Paris porque lá “não há olhares frios”. Nenhum foi tão caloroso
quanto o de Jean-Pierre Leloir.