29 de abril de 2017

Dvorák: Piano Trios Op. 65 & 90 (Harmonia Mundi, 2017)



São temas abrasivos, ariscos, algo lacónicos, entremeados por secções que denotam uma sensibilidade extrema, mais domesticada, quiçá apreensiva. Refletem de tal modo parte do espírito eslavo que Dvorák não abdicou de tocá-los na sua tournée de despedida pela Boémia e pela Morávia, em 1892, pouco antes de partir para os Estados-Unidos da América, onde assumiria a direção do Conservatório Nacional de Música, em Nova Iorque. Organizam-se em seis andamentos sucintos – nessa medida mais parecendo uma suíte folclórica do que outra coisa qualquer, com o mesmo movimento pendular entre a histeria e a hipocondria – e dir-se-ia que assim se mantêm para que nada chegue a atraiçoar o seu insurrecto carácter: o seu aspecto formal logo ditando um divórcio do cânone europeu, a rejeição da sua autoridade legítima. Daí que ficasse conhecido como “Dumky”, esse “Trio para Piano Nº 4”, em Mi menor, Op. 90 – dumky é o plural de dumka, por sua vez derivada de duma, espécie de sorumbática balada épica de origem ucraniana cuja tipicidade melódica e rítmica Dvorák evocou igualmente em “Danças Eslavas”, no “Concerto para Violino” e no segundo “Quinteto para piano”. 

É um momento absolutamente libertador na sua escrita, este, em que Dvorák se vira para o oriente imediatamente antes de rumar ao Novo Mundo – e já Paul Griffiths notou o quão significativo é que o compositor tenha adotado música de minorias num e noutro lugar (de odes cossacas e poesia barda kobzar a espirituais negros e cânticos ameríndios). Trata-se de um gesto político com origem no Ausgleich, o compromisso austro-húngaro de 1867, extremamente impopular entre os checos. Mas em termos artísticos não há aqui nada que não seja invenção sua. O mesmo se dirá do muito mais ambicioso “Trio para Piano Nº 3”, em Fá menor, Op. 65, embora neste particular se tenha de falar da figura avuncular de Brahms, que Dvorák faz os possíveis por igualar e exceder em densidade, melancolia, energia, ternura. O Trio Wanderer honra-lhe tamanha aspiração.

Tomasz Stanko New York Quartet “December Avenue” (ECM, 2017)


Sempre literato (depois de referências nos seus discos a obras de Joyce, de Lautréamont e da poetisa Wislawa Szymborska, com a qual chegou a colaborar), Tomasz Stanko evoca agora Bruno Schulz, o malogrado autor de “As Lojas de Canela”, executado em 1942 num ajuste de contas entre oficiais nazis. É a confirmação de um pendor erudito na sua produção, que, à primeira vista, se diria de todo ausente do seu credo artístico, de tal maneira a sua música parece dominada pelo instinto que leva um evadido a apagar os vestígios que deixa pelos sítios por onde vai passando. Em “A Rua dos Crocodilos”, há, aliás, um parágrafo de Schulz que se diria descrever algo do que aqui se deteta: “A maior fatalidade deste bairro é que nele nada se realiza, nada chega a ser definitivo: todos os movimentos iniciados se suspendem no ar, todos os gestos se esgotam prematuramente sem ultrapassar o ponto de inércia. Todo ele não é senão a fermentação de desejos despertados precocemente, e por isso exânimes e vazios. […] Em nenhum outro lugar pressentimos tantas possibilidades quanto aqui, ficamos tão perto da consumação. Mas não se vai para além disso.”

Também este “December Avenue”, no qual as melodias se espalham com o sopro do vento, é mais sugestivo que persuasivo, enigmático, esboçado, insinuante, indeciso, reduzido à citação. E também ele dá mostras de querer substituir a ação pela apatia, a definição pela indeterminação. Nada que Stanko não tenha promovido no registo anterior deste seu quarteto nova-iorquino (o deslumbrante “Wislawa”, face ao qual se mantêm David Virelles, no piano, e Gerald Cleaver, à bateria, enquanto Thomas Morgan se vê rendido por Reuben Rogers, no contrabaixo, o que, apesar de tudo, permite que o novo disco adquira outro fundamento) ou, há muito tempo atrás, ensaiado no quinteto de Krzysztof Komeda. Descrevendo um mapa urbano que ganhava ares de maquete, Schulz referiu-se a sólidos e prismas que “num romântico e sombrio chiaroscuro dramatizavam e orquestravam a complexa polifonia arquitetural” da cidade. É o que Stanko faz ao jazz, de cuja memória se vai aproximando pela via do sentimento em vez da ciência, no seu tom magoado e anabásico, como num ato de contrição.

22 de abril de 2017

Mozart/Rachmaninov: Concertos & “Grigory Sokolov: A Conversation That Never Was” (Deutsche Grammophon, 2017)


Na sua última grande entrevista, em 1941, Sergei Rachmaninoff confessava que ao abandonar a Rússia tinha imediatamente renunciado a si: “Perdendo o meu país, perdi-me a mim mesmo”. Stravinsky costumava dizer algo do género. Aliás, como a generalidade dos órfãos da Revolução de Outubro, imagina-se que nem na poesia encontrasse consolo: “As saudades da pátria, que ilusão”, “Que me importam os rostos entre os quais/ possa viver como um leão rugindo?”, “O voraz leitor de jornais/ e mungidor de intrigas/ é do século vinte/ e eu de todos os séculos!”, “Perplexa como um tronco/ sou o que resta de uma alameda”, escreveu Tsvetáieva no exílio. Claro que Rachmaninoff não precisou de emigrar para conhecer a alienação e a carência: pelo contrário, cedeu-lhes o palco desde a primeira hora. E no “Concerto para Piano Nº 3”, em Ré menor, Op. 30, é toda uma assombração litúrgica que põe em cena, com aquelas ruminações ortodoxas entremeadas pelo telintar das vozes dos anjos: entregue a Sokolov, o início da longa cadenza é uma lenta procissão de um eremita à luz da vela, com o livro sagrado na mão esquerda e um sino na direita. E como Horowitz, Gilels ou Berman antes de si, eleva a melancolia do Adagio a um ato de comunhão e conduz ao êxtase a energia triunfalista do Finale. Trata-se de uma gravação arrebatadora, de 1995, nos Proms, com a Filarmónica da BBC e Yan Pascal Tortelier como que tomados de um fascínio irresistível por tudo aquilo que se passava ao piano. 

O mesmo se pode dizer da Orquestra de Câmara Mahler e de Trevor Pinnock no “Concerto para Piano Nº 23”, em Lá maior, K 488, de Mozart, num registo de 2005, também ele ao vivo. Aqui, é igualmente pelo Adagio (mais que raro, um objeto absolutamente insólito nos concertos para piano do compositor) que as coisas se definem e ao mesmo tempo transcendem: Sokolov toca-o de fora para dentro, reforçando-lhe a inclinação para a quietude, nem que seja para, depois, lhe reanimar a dimensão operática, casando a graça e a tragédia que tantas vezes se cruzam em Mozart. Como diz o maestro Valentin Nesterov em “A Conversation That Never Was”, documentário criado a partir de depoimentos de amigos e colegas do pianista, de material proveniente de arquivos estatais e de coleções particulares e dos poemas de Inna Sokolova (sua mulher): “O ‘Grisha’ dirige a música até às profundezas do seu coração para a fazer obedecer aos seus desígnios”.

“Jazz Images by Jean-Pierre Leloir” (Gerardo Cañellas & Jordi Soley, Elemental, 2016)


Paris rendia-se ao jazz. Outra vez. E representantes de um grupo com o habitat natural ameaçado – como Louis Armstrong, Duke Ellington, Count Basie, Miles Davis, Dizzy Gillespie ou John Coltrane – encontravam um segundo lar. A câmara de Jean-Pierre Leloir captou as férias de uns, o exílio de outros, as dores e as delícias de todos, e dia 26 é inaugurada em Lisboa uma exposição que evoca o período. Pretexto para a apresentação de um livro dedicado ao fotógrafo francês e de uma nova coleção de discos por si inspirada.


John Coltrane está sozinho no seu quarto de hotel, em Juan-les-Pins. É sábado. 24 de julho de 1965, para ser exato. Viajava com Jimmy Garrison, Elvin Jones e McCoy Tyner, que talvez passeassem junto à praia ou brincassem com a filha de Nina Simone pela piscina e prestassem atenção a ‘(I Can’t Get No) Satisfaction’, em repetição permanente na rádio. Planeava um par de concertos para o festival internacional de jazz da cidade, então na quinta edição, e, quiçá não o soubesse, mas, preparava-se igualmente para perturbar a prolongada placidez da Côte d’Azur. Tinha ouvido uma frase de Martin Luther King, Jr., antes de apanhar o avião para Nice (“Tive pesadelos, sim, mas, repito-vos, mais uma vez, que não perdi a fé: eu ainda tenho um sonho”), e é provável que a sentisse como sua. É, também, possível que esquadrinhasse a consciência em busca de resposta para a questão que mais vezes surgia em conferências de imprensa, quando jornalistas franceses lhe tentavam arrancar um juízo acerca da Guerra do Vietname. Seja como for, a verdade é que viria a preterir do alinhamento da sua segunda apresentação dessa semana os temas mais populares no seu repertório, ‘Naima’ e ‘My Favorite Things’, a favor da execução na íntegra de “A Love Supreme”. Na plateia, foi como se os Alpes Marítimos ganhassem novo cume, ao contrário das ondas de choque que, na mesma altura, bem longe dali, Dylan soltava entre o público do Newport Folk Festival ao subir ao palco de guitarra elétrica na mão. Será que, como Eric Dolphy lhe tentou fazer ver, havia na Europa uma maior tolerância para a vanguarda? Dolphy. A memória daquele que tanto desejava ter a seu lado era fulminante. Tinha morrido há onze meses, em Berlim, em agonia num corredor de hospital. A ironia. Ele, que agora, nesta tarde de sábado, estava de novo à sua frente, num retrato que Jean-Pierre Leloir lhe tinha vindo entregar. Sem desviar o olhar do amigo, Coltrane agradece, pousa a efígie na escrivaninha, pega no saxofone e começa a tocar. Sem hesitar, Leloir tira-lhe uma fotografia.

“Coltrane toca para Dolphy”, explica Marion Leloir, na “Jazz Magazine” de dezembro. “A foto [que lhe tinha acabado de ser oferecida] toma parte instantânea de um momento íntimo”, lembra, confirmando que a imagem que Jean-Pierre na ocasião fixou estava entre as que ele mais gostava no seu acervo. Marion é entrevistada a propósito do lançamento de “Jazz Images”, um álbum de 168 páginas (com um CD de 18 temas como bónus) organizado por Gerardo Cañellas e Jordi Soley a partir do arquivo de Jean-Pierre Leloir (1931-2010). A história que se esconde por trás da foto ilustra aquilo que, no livro, Quincy Jones adianta em prefácio: “Não tiramos fotografias só para preservar uma imagem mas também para conservar as histórias que a acompanham. Mais que um fotógrafo, Jean-Pierre Leloir foi um historiador.” E é uma entre as muitas que Marion terá para contar na próxima quarta-feira, dia 26, pelas 18h30, quando, em Lisboa, na galeria da Fnac Chiado, se inaugurar uma exposição consagrada à obra do pai.

Leloir foi um dedicado cronista das artes de palco. Viria a tornar-se no fotógrafo predileto de Brel e a colaborar com a “Rock & Folk”, para a qual imortalizou gente como Dylan, Hendrix e Zappa e membros dos Stones, dos Floyd ou dos Zeppelin, mas, antes de mais, daria nas vistas ao retratar músicos de jazz – lá está ele no elegantíssimo “Seeing Jazz”, representado junto a vultos na especialidade como William Claxton, Herman Leonard e William Gottlieb. Aliás, foi um período em que a indústria fonográfica não abdicava dos seus serviços (da Vogue à Philips, da Barclay à Brunswick, da Columbia à Decca, não houve chancela a operar em França que não tivesse utilizado fotos de Leloir nas suas edições). É em nome dessa ligação, presume-se, que se dá à estampa a revisionista Jazz Images: uma coleção de clássicos com novas capas alimentadas pelos seus negativos (“Kind of Blue”, “Giant Steps”, “Waltz for Debby”, “Moanin’”, “Time Out”, “Saxophone Colossus”, “Jazz Samba”, “Little Girl Blue”, etc.).

Mas Leloir distinguia-se por transcender o cânone industrial. Em “Jazz Images” encontramo-lo nos bastidores de salas de concerto (com Louis Armstrong e Donald Byrd) e festivais de verão (com Count Basie e Ray Charles), por pistas de aeroporto (com Billie Holiday e Thelonious Monk), praias, docas e piscinas (com Dizzy Gillespie, Ella Fitzgerald e Nina Simone), pelas ruas (com Don Cherry e Bud Powell) e em casa (com Quincy Jones e Sarah Vaughan). Sempre do lado daqueles que iludiam realidades locais marcadas pelo preconceito e encontravam em França o respeito que há muito sabiam merecer. Isso e a dignidade que advém de oportunidades de labor e lazer com que nos EUA nem sonhavam. Foi uma espécie de fim de semana prolongado para os que sentiam na pele aquilo que em “Paris Blues”, a certa altura, afirma a personagem interpretada por Sidney Poitier (“Ouve, aqui ninguém diz Eddie Cook, músico negro; dizem o músico Eddie Cook, ponto final”) e que em “Round Midnight” expressa Dale: que se muda para Paris porque lá “não há olhares frios”. Nenhum foi tão caloroso quanto o de Jean-Pierre Leloir.