Mantém-se
perfeitamente contemporâneo, Beethoven. O que justifica que, pelos escaparates,
e de maneira a transmitir novas formas de pensar, de interpretar ou escutar esta
música, se acumulem as mais peculiares visões da sua obra. Inclusivamente
daquela a que não se entregou de modo tão enfático, como no caso das cinco
“Sonatas para Violoncelo e Piano” e de um trio de delírios em que recorreu à mesma
instrumentação: “Variações Sobre o Tema ‘Bei Männern, welche Liebe
fühlen’ de ‘A Flauta Mágica’, de Mozart”, WoO 46 (em que, porventura por
comungar dos seus anseios, Beethoven quase corta a respiração a Papageno),
“Variações Sobre o Tema ‘Ein
Mädchen oder Weibchen’ de ‘A Flauta Mágica’, de Mozart”,
Op. 66 (no seu género, quiçá a mais substantiva deste período inicial, numa
altura em que não lhe passava pela cabeça que o futuro lhe reservava contacto
direto com o libretista de Mozart, Emanuel Schikaneder) e “Variações Sobre o
Tema ‘See, the Conqu’ring Hero Comes’ de ‘Judas Maccabaeus’, de Handel”, WoO 45
(talvez aquela em que mais cedo se deteta a sua aptidão em iludir qualquer
restrição temática). Também as duas primeiras sonatas – Op. 5/1 e Op. 5/2,
estreadas em 1796 – provêm desse tempo em que, parafraseando Kant, autor com que
possuía algo em comum, Beethoven desejava sair de uma tutelagem que se impôs a
si próprio. A de Haydn, com o qual estudou e cujas sinfonias terá usado como
modelo (isto, claro, por não existirem propriamente precedentes para esta
combinação de instrumentos), embora, gradualmente, de compasso a compasso, se
pense, de novo, no filósofo, quando dizia: “Sapere
aude! Tem a coragem de usar a tua própria razão”.
Em 1820, num dos seus
famosos ‘cadernos de conversação’, Beethoven faria uma referência direta a
Kant, ao apontar “o céu estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim”. A sua
produção tornar-se-ia tão complexa que um crítico chegaria a caracterizá-la como
“chinesa” (e Nietzsche viria a apelidar Kant de “o chinesinho de Königsberg”).
Ouvindo as sonatas do Op. 102 – a quarta aproxima-se das suas sonatas para
piano desta fase e a quinta, na qual se pressente o seu crescente fascínio pelo
barroco, só tem equivalente nos seus derradeiros quartetos de cordas – é já a
esse Beethoven que se acede: abstruso mas dominante, distante mas jamais
indiferente, reservado mas nunca egoísta, preso dentro de si e, no entanto, para
sempre, livre. Capuçon e Braley mordem os calcanhares ao cânone
(Rostropovich/Richter, Fournier/Gulda, du Pré/Barenboim).
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