17 de fevereiro de 2018

RIAS-Symphonie-Orchester/Ferenc Fricsay “The Mozart Radio Broadcasts” (Deutsche Grammophon, 2018)



Ferenc Fricsay ergueu os braços, fechou momentaneamente os olhos e quando os tornou a abrir dir-se-ia sondar a foz do Hudson em busca da Estátua da Liberdade até, depois, se fixar na pequenita ilha Ellis: “Imaginem todos aqueles imigrantes a chegar, por fim, à Terra Prometida”, dizia, trazendo à lembrança miragens de Nova Iorque e muitas crónicas de esperança e desespero, com o vapor dos transatlânticos a misturar-se com mantos de neblina e incenso e a franquear aparições, memórias, promessas e omissões. Segundo Yehudi Menuhin, que o recordou em elogio fúnebre, um ano após a sua morte, o maestro falava à sua orquestra acerca da nona de Dvorák, mais conhecida como ‘Sinfonia do Novo Mundo’, perfumando-a com desejos e perfurando-a com saudades: “Ao medir o impacto das suas interpretações junto do público, percebi a importância dessa capacidade de dar forma ao drama [da música]”, concluía. Agora, pense-se nele de pé, encurvado, de orelhas coladas à cabeça e crânio algo dolicocéfalo, a ionizar uma plateia amorfa constituída por instrumentistas de roupa coçada, de semblante carregado, em completo desnorte mas com vontade de emendar a mão. Era o plantel da orquestra RIAS (acrónimo, em alemão, para Rádio no Sector Americano), de Berlim, há 70 anos atrás, durante o bloqueio soviético.

Mas, conforme, mais tarde, escreveu, “num instante esquecemos o frio e os apertos impostos”: músicos e maestro fechados numa igreja, a ensaiar de modo contínuo, gravando um disco atrás do outro e suspendendo o trabalho apenas quando os efeitos da ponte aérea se faziam sentir mais a sério. Como Elsa Schiller, que conduziu os destinos da RIAS e, logo a seguir, da Deutsche Grammophon, lembrou, ele era de ideias feitas e entusiasmo fácil e estava “de corpo e alma dedicado ao belo” e a aproximar a execução de cada peça a um ideal – isto, por entre prédios em escombros, gente cabisbaixa, o mundo em ruínas. Mas mais otimista que ele, que tinha fugido à Gestapo, só ela, sobrevivente do gueto de Therensienstadt. Daí, também, presume-se, a escolha conjunta deste repertório para emissões radiofónicas entre 1951 e 52 (até hoje inéditas em CD): serenatas, divertimentos e algumas das charmosas sinfonias que Mozart compôs entre os oito e os 17 anos de idade, de melodias apelativas, ritmos intuitivos, harmonias simples mas desarmantes. Nelas, Fricsay e a RIAS estão como paralíticos que mexem um dedo do pé depois de lhes ter sido dito que nunca mais voltariam a andar: estão a reconquistar a liberdade.

Sem comentários:

Enviar um comentário