Ferenc Fricsay ergueu os braços,
fechou momentaneamente os olhos e quando os tornou a abrir dir-se-ia sondar a
foz do Hudson em busca da Estátua da Liberdade até, depois, se fixar na
pequenita ilha Ellis: “Imaginem todos aqueles imigrantes a chegar, por fim, à
Terra Prometida”, dizia, trazendo à lembrança miragens de Nova Iorque e muitas crónicas
de esperança e desespero, com o vapor dos transatlânticos a misturar-se com mantos
de neblina e incenso e a franquear aparições, memórias, promessas e omissões. Segundo
Yehudi Menuhin, que o recordou em elogio fúnebre, um ano após a sua morte, o
maestro falava à sua orquestra acerca da nona de Dvorák, mais conhecida como
‘Sinfonia do Novo Mundo’, perfumando-a com desejos e perfurando-a com saudades:
“Ao medir o impacto das suas interpretações junto do público, percebi a
importância dessa capacidade de dar forma ao drama [da música]”, concluía. Agora,
pense-se nele de pé, encurvado, de orelhas coladas à cabeça e crânio algo dolicocéfalo,
a ionizar uma plateia amorfa constituída por instrumentistas de roupa coçada, de
semblante carregado, em completo desnorte mas com vontade de emendar a mão. Era
o plantel da orquestra RIAS (acrónimo, em alemão, para Rádio no Sector
Americano), de Berlim, há 70 anos atrás, durante o bloqueio soviético.
Mas, conforme, mais tarde, escreveu, “num instante esquecemos o frio e os
apertos impostos”: músicos e maestro fechados numa igreja, a ensaiar de modo contínuo,
gravando um disco atrás do outro e suspendendo o trabalho apenas quando os
efeitos da ponte aérea se faziam sentir mais a sério. Como Elsa Schiller, que
conduziu os destinos da RIAS e, logo a seguir, da Deutsche Grammophon, lembrou,
ele era de ideias feitas e entusiasmo fácil e estava “de corpo e alma dedicado
ao belo” e a aproximar a execução de cada peça a um ideal – isto, por entre prédios
em escombros, gente cabisbaixa, o mundo em ruínas. Mas mais otimista que ele, que
tinha fugido à Gestapo, só ela, sobrevivente do gueto de Therensienstadt. Daí,
também, presume-se, a escolha conjunta deste repertório para emissões
radiofónicas entre 1951 e 52 (até hoje inéditas em CD): serenatas,
divertimentos e algumas das charmosas sinfonias que Mozart compôs entre os oito
e os 17 anos de idade, de melodias apelativas, ritmos intuitivos, harmonias
simples mas desarmantes. Nelas, Fricsay e a RIAS estão como paralíticos que
mexem um dedo do pé depois de lhes ter sido dito que nunca mais voltariam a
andar: estão a reconquistar a liberdade.
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