24 de fevereiro de 2018

Beethoven: Piano Sonatas (Deutsche Grammophon, 2018)


Por uma vez, Beethoven estava a ser conservador. “Ora aí está uma sonata que há de manter pianistas entretidos por uns bons 50 anos”, previu. A exceção, claro, seria Carl Czerny, que via como uma extensão da sua própria vontade. Mas a verdade é que, sim, foi preciso aguardar pela geração de Liszt, Clara Schumann ou Von Bülow para que a ‘Hammerklavier’, i.e., a “Sonata para Piano Nº 29”, em Si bemol maior, Op. 106, se começasse a afirmar no repertório. Tal era já a sua reputação, aliás, que, ao escutá-la num recital de Liszt, Berlioz confessou ter assistido à interpretação ideal de uma peça que para todos os efeitos era impossível de tocar – foi um pouco como Édipo “a desvendar o Enigma da Esfinge”, sugeriu. Seja como for, a ideia de Beethoven ficou no ar – mais tarde, quando Frederic Lamond, precisamente um dos últimos discípulos de Liszt, a mostrou ao virtuoso Von Bülow, ouviu-se: “A insolência, rapaz! Tens de esperar muitos e bons anos antes de tentares sequer tocar uma obra destas!” 

Agora, que se assinala o bicentenário da ‘Hammerklavier’, vem Murray Perahia explicar que muito cedo a pôs de lado: que, de certa forma, pelos seus vinte e picos não conseguia dar tudo o que a obra lhe exigia. “Voltei à ‘Hammerklavier’ mais de quatro décadas depois”, diz, em notas de apresentação, “tocando-a aqui e ali”. Em boa hora o fez, obviamente, conquanto a complemente com uma ‘Ao Luar’ algo pálida e não lhe conceda – como o fizeram Gilels ou Brendel – assim tanto espaço para que aquelas suas relações harmónicas mais insólitas parem de se acotovelar (se assim não fosse, por sinal, não teríamos em mãos uma interpretação aproximada à de Kempff em termos de duração, o que é uma surpresa). Perahia sabe que Beethoven se via como Prometeu encarnado durante a composição da obra – “Carrego hoje mais tristezas do que em qualquer outro ponto da minha vida por ser demasiadamente bem-intencionado face aos demais”, desabava em 1819 – e decidiu-se por libertá-lo dos grilhões, ao contrário de outros que tentaram traduzir a sua dor. Nas suas mãos, a Fuga do último andamento é exatamente isso.

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