De âmbito praticamente sinfónico no que inclui de
mais elevado, este “Light Never Bright Enough” não abdica da víscera da
intimidade. Ou seja, nesta atuação gravada ao vivo a 9 de julho de 2016 no Cafe
Oto, em Londres, Haino e Butcher, figuras habitualmente isoladas naqueles recitais
em que se dão tensas autópsias ao solilóquio, aplicam-se a gerar enzimas capazes
de catalisar o que um e outro possuem de mais indigesto. O resultado – embora
se trate de uma característica algo anatemática no contexto da improvisação
livre – é profundamente narrativo, com Butcher, de repente, a deixar-se atrair
por aqueles acordes convulsos que Haino torce à guitarra como um
caça-tempestades das Grandes Planícies vai atrás de uma nuvem escura. Como é
óbvio, alguém que os escutasse sem os ver teria dificuldade em conciliar som e
imagem, o que, de certo modo, em certas mentes, os reduziria a peões da arte
conceptual – mas na verdade há uma crueza tão táctil naquilo que fazem, que,
com franqueza, o mais estranho é Haino não ter ficado com os seus longos cabelos
eriçados em virtude da muita eletricidade que à sua volta acumulou.
Como se
costuma lembrar, teria a seu lado alguém equipado a escalpelar o fenómeno ao
pormenor: Butcher doutorou-se em Física antes de se dedicar a tempo inteiro à
música e supõe-se que alguma da sua curiosidade por partículas elementares se
terá transferido de uma disciplina à outra. Por sinal, será dos poucos com
propriedade para reconhecer o carácter infinitesimal daquilo que faz em palco,
o que, por sua vez, o tornará particularmente sensível às circunstâncias únicas
de cada concerto. Ouvi-lo com Haino implica imaginá-lo a lidar com um conjunto
inusitado de restrições: uma delas, porventura a mais inesperada mas também a
mais desarmante, dá-se quando, de súbito, o japonês tranca num pedal em
contínua repetição um desfigurado espectro tonal, larga a guitarra e se põe a
soprar num género de charamela chinesa – a seu lado, após uma pausa para
pensar, Butcher fecha os olhos, respira fundo e aceita compor com a aparição um
hino a vidas passadas. E, aí, ficam um só.
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