Terá sido Hesíodo, um contemporâneo
de Homero, o primeiro poeta europeu a ver-se como um sujeito ativo em situações
dramáticas por si criadas. E, como não poderia deixar de ser, julgava-se uma
vítima. Principalmente dessa “fatal calamidade para os homens”, “esse flagelo”,
que “mais não faz que dano”, que no mundo “lança horríveis misérias”, essa
“exploradora”, “preguiçosa, fraca e inútil”, a Mulher. Milénios depois, há quem
não resista a colocar sob o prisma desta antiga misoginia ocidental este
“Concerto para Violino Nº 1”, de um Béla Bartók incapaz de se libertar da dependência
do sexo feminino. Mas não se fala tanto daquele odium mulieris que Cícero mais tarde diagnosticou quanto do rancor
secreto e profundo que pode advir de um amor não correspondido. Bartók estava
apaixonado pela violinista Stefi Geyer quando compôs os dois primeiros andamentos da obra, entre 1907 e 1908, e
foi a ela que os dedicou. Mas o sentimento não era recíproco, crê-se, e Geyer empurrou-os
literalmente para o fundo de uma gaveta. Desanimado, Bartók não os complementou com o canónico andamento final, ficando o Concerto, tal como a relação, por consumar. Só após a morte de dedicador e dedicatário tornou a ver
a luz do dia, tendo sido estreado em 1958.
Caso tivesse vindo a refletir sobre
o assunto, na ocasião, Hesíodo teria certamente arranjado forma de falar na
Caixa de Pandora, outra entre os “zângãos predatórios que atormentam o
laborioso e sofredor abelha-homem”. E, nos últimos anos, há duas interpretações
da obra que se diriam ampliar este conjunto de contradições: as de Isabelle
Faust, com a Swedish Radio Symphony Orchestra dirigida por Daniel Harding
(Harmonia Mundi, 2013), e de Janine Jansen, com a London Symphony Orchestra sob
o comando de Antonio Pappano (Decca, 2016). Pois, que diferença ouvir a mesma
LSO guiada por Roth e sujeita à influência de um solista que nem em sessões de
terapia com um freudiano rigoroso seria capaz de conjugar amor e ódio na mesma
frase, quanto mais ao longo de um só concerto. Mas se Renaud Capuçon devolve
este Bartók à esfera privada do desejo e do ardor, já no “Concerto para Violino
Nº 2” se prova capaz de situar a ação noutro campo de batalha: Bartók
entrincheirado numa ideia de Hungria que a História se preparava para desfazer.
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