Em “A Escada de Caracol”, o filme
de Robert Siodmak, há um momento em que Helen, a protagonista, no patamar,
suspende o passo entre lanços e se põe a ver no espelho o seu reflexo. Compõe-se,
dando um jeito no cabelo, alisando a saia, e a seguir, de modo algo imprevisto,
leva as mãos lentamente à garganta. Havia perdido a fala e sabe-se que anda à
solta um assassino em série que ataca mulheres indefesas. Depois, quando se
abre o plano e se percebe que ela está a ser observada pelo presumível homicida,
já não é bem a sua imagem que está frente a si, mas, sim, décor, uma tela pintada na forma de um espelho. Obtida por
constrangimentos técnicos, e quase impercetível, trata-se de uma cena de enorme
importância, pois sugere uma distorção do mundo tal como o conhecemos ou, pelo
menos, tal como o estamos habituados a ver. É o que vem à memória mal se vê a
capa deste “After Bach” (que reproduz uma fotografia tirada por Peter Marlow),
em que se diria que Brad Mehldau e J. S. Bach são apanhados algures num vão de
escada a meio caminho um do outro.
Aliás, a premissa do norte-americano é tão
convincente (interpretar prelúdios e fugas de “O Cravo Bem Temperado” de
permeio com originais seus inspirados na obra do alemão) que, a certa altura,
não se sabe bem o que é reflexo do quê. Até porque, lá está, mesmo à distância
destes duzentos e tal anos, Mehldau especula sobre essa fascinante, indefetível
e facínora questão que amiúde se coloca: quantos achados na obra de Bach terão
vindo a reboque da improvisação? E chega a sugerir-se o impensável: que, de
repente, até Bach terá andado pela vida às apalpadelas, não sabendo de onde
vinha e menos ainda para onde ia, conhecendo pouco dos outros e menos ainda de
si. O que, praticamente ipsis verbis,
se trata de uma frase de Goethe. Vem a propósito. Há uns meses, depois dos
acontecimentos de meados de agosto em Charlottesville, numa carta aberta, Mehldau
recusava-se a aceitar o “relativismo moral” da Presidência do seu país e citava
o filósofo: “Escolham bem. O momento da escolha é breve, as consequências da
escolha são para sempre”, lembrava. Agora, nada resume tão bem o que faz aqui: uma
evocação de Bach sem uma nota a mais, lançada na espiral da eternidade.
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