Falecia há 100 anos Claude
Debussy, na madrugada de 24 para 25, consumido por um cancro no cólon e sem
saber já se o que ouvia vinha dele ou dos céus, com o Canhão de Paris a lançar
projéteis de hora a hora sobre a cidade a partir de posições alemãs à distância
de 100 km, cada granada aí com uns 100 kg. Enquanto ia enterrar, a 29, um obus bombardeou
parte da Igreja de São Gervásio e São Protásio, levando consigo quase 100 dos
fiéis que na paróquia se reuniam para o serviço litúrgico da Sexta-Feira Santa
mas, por mero acaso, poupando à destruição o órgão em que a dinastia Couperin tocou
durante dois séculos, o que, claro está, tivesse ele sobrevivido à Grande
Guerra, é perfeitamente possível que Debussy visse como um sinal. Incapaz de
participar no conflito, havia no verão de 1915 composto “En blanc et noir”,
para dois pianos, onde incluía a seguinte dedicatória: “Au Lieutenant Jacques
Charlot tué à l’ennemi en 1915, le 3 mars.” Um por um, a certa altura, a peça
desarranja os constituintes de um famoso hino luterano e cita a “Marselhesa”,
reencontrando-se assim aquele que, em 1914, numa carta a Robert Godet, um amigo
de longa data, dizia: “Sinto-me tão diminuído! Ah, aquele mágico, que tanto admiravas
em mim, onde está ele agora?”
Pois, 100 anos após a sua morte, está,
por exemplo, nas mãos da indústria fonográfica, que permanece sob o seu feitiço
e aproveita a efeméride para colocar no mercado títulos como “Complete Works:
The Centenary Edition” (33 CD, Warner), “Complete Works” (22 CD + 2 DVD,
Deutsche Grammophon), “Édition Centenaire” (4 CD, Sony, que traz de volta ao
mundo dos vivos a gravação de Catherine Collard de “Prelúdios”), “Complete
Piano Works” (5 CD, Harmonia Mundi, que reedita a integral de Alain Planès) e
LP de Krystian Zimerman, Arturo Benedetti Michelangeli e da Cleveland Orchestra
dirigida por Pierre Boulez a si dedicados. As maiores revelações guardam-se
para 27 de abril, quando a Erato lançar “Centenary Discoveries”, e, até agora,
também na Erato, nenhum título se aproxima do postulado por “Sonates &
Trios”, com Emmanuel Pahud (flauta), Renaud Capuçon (violino), Bertrand
Chamayou (piano), Edgar Moreau (violoncelo), Gérard Caussé (violeta) e Marie-Pierre
Langlamet (harpa) consagrados aos seus derradeiros opúsculos sem cair na tentação
de transformar qualquer investida na sua obra numa espécie de parque temático
devotado ao insólito, numa área em estado de exceção em que se sujeita Debussy a
um tipo de solidão que não se deseja a ninguém.
“Creio que Debussy era um
solitário”, dizia Daniel Barenboim em “Entre quatre-z-yeux”, um documentário de
Paul Smaczny, de 1999, agora reposto nos escaparates em DVD e Blu-Ray como
“Daniel Barenboim plays and explains Les Préludes” (EuroArts). “Estava sozinho
naquilo que trouxe para a música. Isto é, sabemos que teve muitos contactos com
os seus contemporâneos – com pessoas como Satie ou Stravinsky – mas acho que
ele era diferente. Parece-me que foi alguém que permaneceu muito reservado,
muito sigiloso. E parte da ideia de criar uma ilusão tem a ver com isso, com
secretismo.” Ao que tudo indica, o filme deixava-se inspirar por uma frase de
Louisa Liebich saída de um texto seu publicado em 1918, em “The Musical Times”:
designava-se “An Englishwoman’s Memories of Debussy” e nele lia-se que, num
recital à porta fechada, Debussy tinha dito que os prelúdios só deveriam ser
tocados na intimidade – entre quatro paredes, frente a frente, olhos nos olhos
(“entre quatre yeux”, em francês). “Isto
é a arte da sugestão. A arte da ilusão”, explica Barenboim para a câmara. “Toda
a música o é, de certa forma, mas mais ainda a de Debussy. A ilusão de que há
um caminho… Não necessariamente a seguir. Como uma paisagem vista ao longe de
uma janela.”
Não admira que a sua visão do
primeiro livro de “Prelúdios” esteja tão embaciada. Aliás, até a imagem do filme,
rodado em Reus, na Catalunha, em espaços como Institut Pere Mata e Casa Navas,
se diria deslustrada pela luz bruxuleante do ‘foco suave’. Esta aversão ao naturalismo,
que se diria conforme à índole do compositor, tem como consequência a promoção
da cultura do medo. E, na estética de Debussy, como Gieseking tornou claro,
esse receio por tudo o que é banal pode em si mesmo causar distorções tão
grandes quanto o ato de sucumbir à banalidade. Ou seja, arrisca-se a tornar
submisso o que era insubordinado. Em boa hora, então, decidiu Barenboim complementar
estes “Prelúdios” (gravados em 1998 para o filme e agora licenciados à DG) com uma
recém-captada “Estampes” repleta de tridimensionalidade. É algo em que se pensa
ao escutar Pollini no segundo livro de “Prelúdios”, quando lhes atribui a transparência
e a exactidão necessárias para que se compreendam pelo salto no escuro que
foram. Frente a frente, dois modelos de interpretação muito diferentes, quase
antagónicos. Mas, no seu melhor, capazes de fazer jus à frase que Mário de
Sá-Carneiro deixou num poema, em Paris, estava Debussy moribundo: “Quando chego,
o piano estala agoiro.”
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