Certa
vez, em Marrocos, um motorista berbere que discursava sobre o assunto como se
as religiões monoteístas fossem um fenómeno recente contou-me a história de uma
tribo nómada que vivia espalhada pelo deserto na altura em que surgiram os
primeiros colonatos muçulmanos e cristãos. Daí em diante, dizia, sempre que os
seus líderes previam algum tipo de ameaça – em tempos de fome, seca ou
epidemias – faziam um dos seus observar secretamente os movimentos e
conversações dos forasteiros mais próximos de modo a indicar com precisão de que
tipo de povoado se tratava: se muçulmano ou cristão. Devidamente informados, os
líderes da tribo tomavam a sua decisão e anunciavam em voz alta o que nestas
ocasiões sempre se imagina alguém a dizer desde que Abraão foi impelido a
deixar Ur: “Embora, pessoal! Vocês sabem o que fazer!” E todos se puseram a
tirar o mais depressa possível das cestas e alforges os acessórios necessários
para se fazer passar por correligionários dessa estranha gente que se fixava no
meio do nada a lavrar a terra e a adorar um só deus. Foram sempre recebidos de
braços abertos.
Não tendo que o tornar partícipe da moral da história, é óbvio
que quando Kamal Keila compôs uma canção como ‘Muslims and Christians’ (“Não
discutam/ O Sudão é a nossa pátria/ De norte a sul/ Muçulmanos e cristãos/
Cristãos e muçulmanos/ Cantem pela paz”) desejava um desfecho deste género. Não
estava escrito – e a cidade em que ainda vive, Cartum, edificada que está
naquele ponto onde o Nilo Branco e o Nilo Azul se juntam num rio só, não soube
aproveitar a metáfora que tinha mesmo debaixo do nariz. Aliás, Kamal terá desconfiado
que iria ser assim quando em 2005, em Nairobi, por ocasião do Tratado de
Naivasha e depois de muito apropriadamente ter cantado ‘Muslims and Christians’
nas cerimónias oficiais que davam por encerrado o conflito entre muçulmanos e
cristãos no seu país, ouviu isto da boca de um emissário de Omar al-Bashir: “Que
raio estás para aí a dizer? O Sudão é uma nação árabe!” Ficou de coração
partido, tal como o Sudão está hoje dividido em dois. Nessa medida, o maior
mérito deste conjunto de gravações inéditas (de 1992) é tornar a juntar as
peças que entretanto se soltaram. Sem nunca ter um disco editado antes, é como ele
canta desde os anos 70: “Sudão/ No coração de África”.
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