Agora que o ano termina, impõe-se pegar em
“Crepuscule in Nickelsdorf”. E o que logo salta à memória é o que Parker, como
um agente ao serviço de Morfeu, sugeria por alturas de “Trance Map” (2011): pô-lo
a tocar baixinho pela noite dentro, até vir o João Pestana, e fechar os olhos. “Bons
sonhos!”, desejava ele, em notas de apresentação. Em parte, é o que faço. Mas
ignoro a observância do ritmo circadiano e, a meio da manhã, falta-me
melatonina. Talvez por isso não me consiga libertar deste título. “Cego,
tacteio em vão a claridade/ Louco, cuspo no rosto da razão/ E deambulo assim/
Dentro de mim/ Negação a negar a negação”, escreveu Torga, e é como me sinto à
medida que Parker (saxofone soprano), Wright (gira-discos, sampling em tempo real), Adam Linson (contrabaixo, eletrónica),
John Coxon (gira-discos, eletrónica) e Ashley Wales (eletrónica) me largam bem
no meio do que parece ser um enxame, um bando, uma nuvem, um fungagá da
bicharada que diz: “Acorda! Voa! Canta! Acasala! Morre!” – tal e qual como, em
“Bug Music”, David Rothenberg descrevia a sensação de tocar afundado numa onda
de insetos.
Resisto à tentação de tirar o livro da prateleira, até porque, mais
ainda do que não saber se este crepúsculo é o que precede a escuridão da noite
ou o clarão do dia, me apercebo que é a menção a Nickelsdorf que faz soar os
alarmes. Recordo-me de ter lido há pouco tempo um relato qualquer impregnado pela
retórica da anti-emigração a propósito do lugarejo, daqueles que nos levam
imediatamente a tomar um antiemético, e não sou capaz de sacudir o mal-estar. Para
mais – e tudo o que vou agora ouvindo dá mostras de seguir pormenorizadamente o
que imagino passar-se nas minhas células nervosas –, lembro-me de ter associado
essas notícias a umas páginas de “Apocalipse dos Animais”, um aviso do judaísmo
enoquita face à transgressão de fronteiras por parte de seres que “engravidam
mulheres e geram” uma descendência que “ataca pássaros e animais selvagens” e
que começa “a matar e a devorar homens”. Penso no fado desses pobres coitados
de fardo às costas, ali, entre a Hungria e a Áustria, e um melisma levantino de
Parker invoca o “No meio da claridade/ Daquele tão triste dia/ Grande, grande
era a cidade/ E ninguém me conhecia”. Em “Process and Reality” (1991), Parker documentava
a capacidade que a música tem de ocupar o mesmo espaço liminar que os sonhos. E é aí que nos
convida uma e outra vez a mergulhar – para não sucumbirmos aos pesadelos.
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