Jan
Garbarek/The Hilliard Ensemble “Remember Me, My Dear” (ECM, 2019)
Do
mesmo modo que “Here, My Dear”, de Marvin Gaye, tinha como pano de fundo um
divórcio, também este “Remember Me, My Dear” põe em cena uma separação. Gravado
em outubro de 2014, por ocasião da última digressão conjunta entre saxofonista
e quarteto vocal, e duas décadas depois do lançamento de “Officium” (o disco
que os fez pela primeira vez cair nas areias movediças da História), dramatiza
muitos mais anos do que isso – 1000, a contar desde von Bingen. Para a quadra,
destacam-se os cochichos metafísicos de “Most Holy Mother of God” (Pärt),
“Alleluia Nativitas” (Pérotin) ou “Ov Zarmanali” (um hino para o batismo de
Cristo, de Komitas), com os músicos à caça de fantasmas pela nave central da collegiata dei Santi Pietro e Stefano. Quando tocam “We are the Stars” (do
norueguês), tornam ao pó.
Stile
Antico “A Spanish Nativity” (Harmonia Mundi)
Nem
tudo provém da região demarcada das sacristias nesta viagem do Stile Antico pela
música sacra de um Siglo de Oro
espanhol que, por sinal, também se prolongou no tempo. Ouça-se o vilancico que
diz “A un niño llorando al hielo/ Van tres Reyes a adorar/ Porque el niño puede dar/ Reinos, vida, gloria y cielo”, e é como
entrar na intimidade de um lar, com a família reunida em pleno ato de devoção,
enquanto, ao lume, coze um belo besugo aromatizado com pimenta, laranja e lenha.
Já as obras de Tomás Luis Victoria, Francisco Guerrero ou Alonso Lobo – não
obstante a tensão entre estilos – deixam no ar o perfume a incenso e alecrim
seco da missa. Termina com “Cum natus esset Jesus”, de Cristóbal de Morales,
que é para os meninos e meninas, entre os fiéis, saberem que já podem abrir os presentes.
Peñalosa:
Lamentationes (BIS, 2019)
Porque
Victoria, Guerrero ou Lobo não surgiram de geração espontânea, eis um programa
dedicado à obra polifónica de Francisco de Peñalosa. Com aquela diáfana
qualidade que se associa a Josquin, por exemplo, mas capaz de produzir – através
da redução – efeitos expressivos muito particulares, a cascata de notas de Agnus Dei na sua versão de “L’homme
armé” expurga qualquer pecado.
Nem
tanto ao mar nem tanto à terra, é o que não se costuma dizer a propósito de
Veneza. Mas, ali, no fio da navalha entre os dois, talvez seja, até, apropriado
lembrar a expressão, de modo a ilustrar um programa ancorado entre o sagrado e
o profano quando, pela cidade, o vernáculo (de Merula a Lotti) aspirava à
transcendência e a veneração (de Monteverdi a Cavalli) à tangência.
Handel:
Messiah (Alia Vox, 2019)
Em
meados dos anos 50 do século passado, o crítico literário Vivian Mercier
apontava para uma “impossibilidade teórica” em “À Espera de Godot”, de Beckett:
“Uma peça em que nada acontece, mas que, não obstante, consegue manter a
audiência pregada à cadeira”, escrevia. Cerca de 200 anos antes, com “Messiah”,
era Handel a testar a inteligência emocional das suas plateias: decorrem duas
horas até que, por fim, se mencione o nome de Jesus Cristo. Consciente da
sensação de extrema simplicidade que o compositor pretendia transmitir no
oratório – de modo a sublinhar as suas muitas extravagâncias, quiçá, ou de
expressar um calvário pessoal –, Savall faz muito com pouco, empenhado em
diminuir o risco de que a meia centena de almas de que se socorre, e quem quer
que a escute, escorregue para o além.
Keith
Jarrett “Munich 2016” (ECM)
Não
tem que ver com o centenário de Nat King Cole, mas fecha com dois temas a ele
associados – ‘Answer Me, My Love’ e ‘It’s a Lonesome Old Town’. Como se Jarrett
dispensasse 10 minutos de atenção ao hemisfério direito do cérebro (o do
pensamento simbólico), depois de ter dedicado 90 ao esquerdo (o do pensamento
lógico). Para o Natal, talvez sejam as percentagens mais indicadas.
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