Definem a Belle Kinoise como uma
produtora. Mas o Renaud [na foto, o segundo a contar da direita] e o Florent [o primeiro a contar da esquerda] parecem estar a tornar-se realizadores de
documentários. Há algum plano?
Não,
nada disso. Aliás, nem nos consideramos propriamente documentaristas. É
curioso, porque nos festivais de cinema entramos em competições oficiais num
género que nem conhecemos. Produzimos dois álbuns, mas também não somos
produtores. A nossa inspiração vem directamente das pessoas com que nos
cruzamos. E, na realidade, tudo isto está a acontecer por uma série de acasos e
por sermos muito teimosos.
Mas como é que foram parar a Kinshasa?
Em
2003, quando trabalhava como fotógrafo, fui enviado por uma revista para a
fronteira entre a República Democrática do Congo e o Rwanda na ideia de fazer
uma reportagem sobre as crianças-soldado. Por sorte fiquei uma semana em
Kinshasa e conheci uma série de músicos de rua absolutamente espantosos.
Comecei a acompanhá-los e a conhecer as suas famílias e os guetos onde viviam.
Foi arrasador. A música estava por todo o lado: reggae, hip hop, funk, blues, rumba,
tudo misturado com canções e estilos tradicionais e tocado em instrumentos
construídos a partir disto e daquilo. Foi então que liguei ao Florent
dizendo-lhe que era preciso fazer qualquer coisa. Desde então, nestes últimos
cinco anos, temos vagueado pela cidade um pouco como estes músicos. E a boa
notícia é que acho que ainda não vimos nada.
Qual foi o vosso primeiro projecto?
Começámos
a filmar “Jupiter’s Dance” em 2004. O filme é uma espécie de viagem pelos
guetos de Kinshasa através do olhar de Jupiter Bokondji, um artista
extraordinário que criou um género próprio, o ‘bofenia rock’. Na mesma altura
decidimos gravar-lhe um disco: “Man Don’t Cry”. Fizemos tudo do nosso bolso sem
nenhum tipo de apoios e ainda começámos a ser fortemente criticados. Mas em
2007 conseguimos editar comercialmente um DVD e um CD com estes conteúdos. Aos
poucos, o trabalho foi sendo descoberto e ganhou exposição em alguns Festivais
de Cinema.
E isso permitiu-vos avançar para o segundo
filme?
Sim.
Ainda em 2006, durante a campanha eleitoral, começámos “Victoire Terminus”. É
sobre um grupo de mulheres que sobrevivem graças ao boxe. Os torneios são
feitos no mesmo estádio em que lutou Muhammad
Ali. Levámos o filme ao Festival de Berlim. E em 2008, durante o Festival do
British Film Institute, em Londres, recebemos o prémio Grierson.
E
o Staff Benda Bilili?
As primeiras gravações que temos são de 2005.
Estamos a acompanhá-los há quatro anos, por entre muitos altos e baixos. A
nossa intenção é gravar a última sequência do filme num grande Festival Europeu
de Música do Mundo este Verão. Precisamos de um final feliz. Entretanto fomos
co-produtores deste CD para a Crammed.
Quão difícil – em termos humanos e logísticos – tem sido o processo? Começando do princípio, como é que descobriram o Staff Benda Bilili?
Foi
completamente por acaso, ainda durante as filmagens de “Jupiter’s Dance”. Já
nos tinham falado de uma banda de paralíticos e deficientes motores
completamente loucos, que tocavam uma espécie de blues diferente e que
normalmente dormiam pelas ruas. Até que numa noite, no bairro La Gombe, lá
estavam eles a pedir à porta de um restaurante caro, poiso habitual dos
expatriados brancos de Kinshasa. Na altura não ligámos muito mas depois do
jantar continuávamos a ouvir a música pelo ar. Fomos à sua procura. E ficámos
apaixonados pelo que encontrámos.
Mas
o processo tem sido muito difícil. Na altura, ninguém (Vincent Kenis incluído) queria
sequer ouvir a música de um grupo de paraplégicos e meninos de rua. Nós fomos
filmando o seu dia-a-dia sem saber bem o que fazer com aquilo. Era duro. A
sobrevivência dos membros do grupo, os miúdos a dormir no chão, as histórias
das prostitutas de um dólar, os soldados completamente drogados, ladrões por
todo o lado. E a banda nem nos queria aceitar. Eles são duros – têm de ser – e
orgulhosos. Ninguém consegue imaginar aquilo por que passaram, o que tiveram de
fazer para garantir alimento para os seus filhos. Tivemos mesmo de mergulhar no
mundo deles de forma a conseguir contar uma história verdadeira. Mas é
impossível permanecer imune à brutalidade e sofrimento a que já assistimos.
Mas acabaram por se conseguir infiltrar?
Sim.
E percebemos que aquilo que o Staff Benda Bilili mais queria era gravar um
disco. Entre 2004 e 2005 contratámos técnicos de som europeus, pagámos-lhes os
bilhetes de avião para Kinshasa, arranjámos sítio onde ficarem e começámos as
gravações. Correu tudo mal. Os instrumentos dos músicos foram roubados, alguns deles
estavam sempre bêbados demais para conseguir cantar e tocar, o centro de
acolhimento nocturno em que as suas famílias dormiam ardeu, enfim: foi um
pesadelo e um desastre financeiro. No Verão mostrámos imagens da banda e o
pouco que se aproveitou dessas sessões ao Vincent Kenis, que tinha estado em
Kinshasa a gravar o Konono Nº1. Ficou de boca aberta. Gravou logo uns temas mas
tivemos de esperar até ao Verão seguinte para acabar o álbum.
A banda está finalmente optimista? Sentem
que as suas vidas vão mudar?
Uma
das coisas que sempre me impressionou no Staff foi a convicção que sempre
demonstraram em que um dia se iriam tornar conhecidos e viajar pelo mundo.
Agora só falam em juntar dinheiro suficiente para construírem casas para os
seus filhos e conseguirem matriculá-los em escolas. É o seu maior desejo. Fora
isso, sentem o mesmo que as outras pessoas em Kinshasa: que nada realmente
mudou desde as eleições de 2006 e que em termos económicos a situação só se
está a agravar. Mas Kinshasa ainda provoca esta sensação ambígua de desespero e
encanto. Beleza no caos ou caos na beleza, não sei.
Para terminar: a maior esperança nas
ruas é?
Políticos
honestos e qualificados.
Que cinco coisas o fizeram mais feliz
desde que aí chegou?
Ter
cinco sentidos.
Que cinco coisas o fizeram desejar estar
noutro lugar?
Nunca
desejei estar noutro lugar.
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