O Reality Show anunciaria qualquer coisa como: ‘Directamente das ruas de Kinshasa para o Mundo’. E, num momento em que a questão da sobrevivência regressa à agenda económica global, certamente não lhe faltaria audiência. Porque de outra coisa não trata este grupo de paraplégicos e meninos de rua quando espalha a notícia de que é preciso ver para lá das aparências (‘benda bilili’, no dialecto lingala, quererá dizer ‘revelar o que está oculto’). Que a mensagem chegue de uma nação – a República Democrática do Congo – em que tradicionalmente se recorre à guerra e ao terror para se escapar à brutalidade e violência dos tempos de paz só a tornará mais importante. Mas se o Staff Benda Bilili surge à partida como um inevitável clamor, não demora muito a revelar-se por aquilo que também é: a máquina funk dos sonhos de James Brown. O processo implica orgulho, esperança, celebração da vida e, essencialmente, a soberba de quem sabe ser senhor de si próprio. Não será dizer pouco daqueles que quase todos os dias saltam de camas de caixas de cartão para bicicletas feitas à medida e partem em busca de alimento pedalando com as mãos. Que a necessidade de se chegar ao dia seguinte se torne em si um acto histórico não será novidade em África, mas nem sempre o impulso se confunde com uma tendência espiritual e muito menos – ao derivar agora dos que se intitulam ‘jornalistas das ruas’ – resulta de uma imposição de consciência. A lição é que a auto-comiseração é uma forma de suicídio.
Staff Benda Bilili é um grupo de constituição variável mas que neste momento reúne uma dezena de pessoas. Os seus membros fundadores, Ricky Likabu e Coco Ngambali, conhecem-se há 30 anos e, tal como o núcleo central da banda, são paraplégicos – handicapés, vítimas de poliomielite. Dormem nos terrenos em redor do Jardim Zoológico de Kinshasa e partilham o espaço com shégués. Na cidade, handicapés e shégués são há muito aliados. Em troca de protecção, conselho e alimento, as crianças ajudam os paralíticos a deslocar-se por entre o trânsito e, fundamentalmente, a carregar as motocicletas com bens. É essa, aliás, a sua fonte de rendimento histórica. Isentos de impostos na década de 70, os handicapés tornaram-se responsáveis pelo transporte de mercadorias entre Brazzaville (capital da República do Congo, na outra margem do rio Zaire) e Kinshasa. Todas as manhãs, na praia de Ngobila e por entre os armazéns da zona portuária, abastecem-se de arroz, leite, farinha, açúcar, cigarros, bebidas alcoólicas ou margarina enquanto aguardam o primeiro ferry. O que falta numa cidade trazem da outra. Roger Landu, de 17 anos, é um shégué. Foi adoptado por Ricky em criança e é responsável pela característica estética mais distinta da banda. O instrumento que inventou – o santongé, pouco mais que um fio eléctrico atado entre um cabo de madeira e uma lata vazia – provoca um tumulto de glissandos, fazendo deslizar todas as notas possíveis entre as melodias e harmonias produzidas pelas vozes e guitarras. Parece ter sido por si criado o princípio de atingir o máximo de resultados com o mínimo de recursos.
Há pelo menos 50.000 shégués em Kinshasa. A palavra tem origem discutível mas virá da entrada na capital, em 1997, de milhares de crianças-soldado nas fileiras do exército rebelde de Laurent-Désiré Kabila, e da associação do nome de Kabila ao de Che Guevara (o revolucionário cubano tinha estado no Congo em 1965). São órfãos, vítimas de maus tratos, crianças em fuga ou desertores de milícias, e apenas mais um dos grupos em risco num país em que a esperança de vida ronda os 50 anos e no qual morreram mais de cinco milhões de pessoas nos conflitos da última década. Recorrem a todo o tipo de expedientes e personificam hoje o eufemístico ‘Article 15’ instituído em plena cleptocracia da era Mobutu: a doutrina do desenrascanço enquanto modo de vida. É a única visão da lei congolesa aceite nas ruas de uma das cidades com mais crime do mundo. Renaud Barret e Florent de la Tullaye sabem-no bem – a sua Produtora, Belle Kinoise, opera em Kinshasa desde 2003. Durante a campanha eleitoral de 2006 filmaram “Victoire Terminus”, o dia-a-dia num torneio feminino de boxe organizado por mulheres de bairros pobres que fugiram assim à prostituição. Depois, na rodagem do documentário “La Danse Jupiter”, seguiram Jupiter, o líder dos Okwess International, pela periferia. O cantor revelava que a única constante positiva na vida dos congoleses foi a música – como exemplo lá estava Staff Benda Bilili. Renaud e Florent já escreveram no seu MySpace que o encontro se deu de forma fortuita, mas desde então têm-nos filmado sempre que possível e colocado os resultados no YouTube. Foi assim que os descobriu Vincent Kenis – o produtor da editora Crammed que havia gravado Konono Nº1 e Kasaï Allstars. Agora, com a saída de “Très Très Fort” – que inclui alguns desses vídeos – e planos para uma digressão europeia, prepara-se um filme sobre a banda.
Não será difícil olhar para Staff Benda Bilili enquanto metáfora para séculos de História. O seu imenso potencial depende apenas da forma em como for explorado. E se as vidas dos seus músicos efectivamente se transformarem, não será a primeira vez em Kinshasa que vence quem mais tempo passou encostado às cordas – Muhammad Ali assim o comprovou em 1974, no Rumble in the Jungle. Mas nesta terra de onde saíram escravos para o Novo Mundo, borracha para a indústria automóvel norte-americana, urânio para as bombas de Hiroshima e Nagasaki, de onde vêm ainda diamantes, cobre, ouro, cobalto ou coltan – o mineral sem o qual não se fabricam computadores portáteis e telemóveis –, onde se perderam Joseph Conrad ou V. S. Naipaul, em que se matou, pilhou e violou como em nenhum outro lugar, e que ganhou crónica ocidental desde que Diogo Cão lá deixou um Padrão, a esperança tem tendência a morrer sempre que cai a noite.
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