Pegando na metáfora sugerida pelo título deste álbum, há algum tempo que na discografia do Kronos Quartet crescia o murmúrio das águas. Bastava ignorar uma fidalguia estilística aqui ou o indulgente culto do exotismo acolá para que a bonomia face ao seu mitificado ecletismo não desviasse a atenção do essencial. E adivinhava-se que – correndo fragas, escavando as vertentes das montanhas, alagando pauis e estremecendo as profundezas do remanso – haveria a torrente criativa de galgar as margens e, na sua passagem, tudo arrastar até que nada ficasse como antes. Terá tanto de previsto quanto de fortuito que a ideia se concretize plenamente num disco transnacional consagrado às planícies de aluvião e à consequência das cheias. E também na análise póstuma da obra do quarteto se reconhecerá este ponto como o do definitivo ensaio sobre a fertilidade. Mas ao impulso cumulativo normalmente patente nas suas acções acrescenta-se agora uma subversiva visão que, de tão urgente e vigorosa, dispensa a piedade. É essa a característica que com maior exactidão confirma a sua presente clarividência intelectual.
Naturalmente, olhando para 35 anos de comportamentos artísticos de risco, não deixa de impressionar que uma fortaleza estética desta magnitude se prove tão flexível. Para tal contribuirá uma prática de nomadismo cultural que – de “Pieces of Africa” (1992) a “Kronos Caravan” (2000) – se manifestou singularmente inclusiva e de indiscretíssima exuberância. É aliás a gravação de 2000, ao vasculhar recantos do globo em peregrina missão de salvamento, que mais se presta à pretérita categorização de “Floodplain”. Mas aí, a reflexão sobre realidades periféricas aos centros de poder – do português Carlos Paredes ao húngaro Rezsö Seress – era acessória da quimera, insistindo-se num tom de efabulação sujeito ao facciosismo e à dramatização que atraiçoava as origens. Ainda assim, há entre esse e este registo um contínuo de justificável evidência: abria um e fecha o outro com peças da sérvia Aleksandra Vrebalov. Aqui, “… hold me neighbour, in this storm…” é paradigmática: quase uma trágica parábola para a desintegração política, ao longo de vinte minutos nela retumbam trovões, soam os plangentes sinos das igrejas ortodoxas, clamam nas mesquitas os muezzin e uma oração é declamada pela avó da compositora, enquanto as cordas, entre a mais pérfida cacofonia folclórica e uma ventosa fremência soprada da Panónia, flutuam entre os tambores da guerra dos Balcãs.
Mas as ribas do Danúbio são apenas a derradeira paragem. Antes, numa ‘Ya Habibi Ta’ala’ para sempre ajustada ao seu estilo, haverá de se lembrar o Nilo e a voz de Asmahan – ela que em 1944 no ‘grande rio’ encontrou a morte – ou sugerir uma página sálmica cantada na Sexta-feira Santa pela libanesa Fairuz (‘Wa Habibi’). E – com Alim Qasimov – reproduzir com fidúcia o monódico mugham do Azerbaijão numa ondeante versão comparável aos meandros fluviais do mar Cáspio ou – numa composição de Ram Narayan com Terry Riley na tambura – evocar Udaipur, a indiana cidade dos lagos. Não ignorando o drama das regiões permeáveis à devastação das enchentes, importará nestes exemplos – como nos temas provenientes do Iraque, Irão, Etiópia, Turquia ou Cazaquistão – validar, mais que o seu panegírico teor, a total imersão regional e a revelação de tradições musicais ameaçadas por conflitos. E, sobretudo, louvar um audaz controlo narrativo que sobrevive ao cisma, reconhecendo que estas interpretações não diluem fronteiras – destilam-nas naquilo que possuem de mais maculado. Porque, num poético delíquio, o Kronos Quartet mostra hoje o que tantos insistem em ocultar: o arrebatamento de um Mundo em extinção.
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