Simplesmente Maria
Maria João Pires completa 70 anos na próxima quarta-feira,
dia 23 de julho, e, ao que tudo indica, mantém-se longe de Portugal, numa
sucessão de exílios de difícil superação. Não obstante, acabadas de chegar às
lojas, novas edições permitem colmatar a distância entre o país e a sua mais
importante pianista de sempre
O folhetim que no início da década
de 70 amarrava uma nação ao éter não vem propriamente ao caso. A não ser,
claro, que o assunto seja estritamente o do provincianismo ou, se assim o
entenderem, que se enlace a história da analfabeta Maria, que, partindo do
campo, ia servir para a cidade grande, nessoutra da sobredotada Maria, que, na
mesma altura, andava à conquista do mundo longe da periférica capital em que
nasceu. Por tratarem ambas da dor do exílio, talvez. Ou, quiçá, e num plano
muito simbólico, quase supersticiosamente mariano, por ter a segunda procurado
redimir a primeira. Afinal, não foram poucas as vezes que João Pires se norteou
pelo sempiterno anseio do ‘regresso à terra’. Ainda há uns anos, ao
norte-americano “ArtsJournal”, dizia: “Tenho uma fortíssima relação com a
natureza; com o ar, o vento, o sol. Na cidade sinto-me sempre com sede.” Na
imprensa portuguesa, com a típica condescendência com que se toleram as bucólicas
extravagâncias das elites, era habitual, ao longo dos anos, surgirem crónicas dessa
vida elementar: Maria João Pires a conduzir um trator e a cuidar de uma horta;
a ordenhar uma vaca e a dar de comer às galinhas; a viver numa autocaravana. Em
1982 contava ao Expresso a sua experiência num ermo alentejano: “Comprámos um
motor para puxar a água da fonte, acendíamos a lareira quando estava muito
frio. As miúdas iam à escola de bicicleta, eu lavava a roupa, esfregava a casa
e cozinhava”. De certa forma, o Centro de Estudos para as Artes de Belgais foi o
culminar desse processo. Daí, do distrito de Castelo Branco, perguntava ao
espanhol “El País”: “Porque se põe no seguro as mãos de um pianista e não as de
um agricultor?”. Também o Expresso publicou, há uma dúzia de anos, um amplo
retrato dessa quinta que Pires converteu num holístico cenário de pedagogia
experimental e inclusiva, e que parecia combinar elementos de uma colmeia, de
uma comuna, de um convento ou de um complexo habitacional de uma seita, antes de
ter fechado portas acrimoniosamente.
O que o Estado português não
garantiu encontrou a pianista em Salvador da Baía, no Brasil, para onde partiu quando
se cansou em definitivo de um país que a desilude desde que nasceu – afirmou-o,
há mais de 30 anos, precisamente ao Expresso. E é, presumivelmente, o que
desenvolve, hoje, nos arredores de Bruxelas, ao abrigo da Capela Musical Rainha
Isabel, instituição de ensino musical em que é docente, através dos projetos
Partitura e Equinox: um, dedicado à transmissão do conhecimento em recitais partilhados
com solistas prometedores, outro, consagrado à prática coral e a crianças
desfavorecidas. Na sua teoria da educação, ela, que crê que a “a arte não se
ensina”, enfatiza “a parte emocional, empírica, o que é do domínio do
inexplicável”. Guia-a um sobressalto de lógica que sintetizou à francesa
“Classica”: “Especialistas do mundo inteiro interrogam-se: ‘Que planeta vamos deixar
aos nossos filhos?’ Pois, a mim, preocupa-me mais o seguinte: que filhos vamos
deixar ao nosso planeta?” Nesta matéria, a sua candura é apenas superada pela
honestidade.
E este novo registo com o maestro Daniel Harding prova que
efetivamente prefere a cooperação à competição. Num programa votado a
Beethoven, irradia felicidade ao tocar a cadência do Allegro con brio do
“Concerto para Piano Nº 3 em Dó menor”, está envolta em lençóis de seda no Largo
e, de seguida, no Rondo-Allegro, salta da cave para o sótão do teclado e atinge
gloriosa e incredulamente a meta – Rosa Mota, em Seul, esticando os braços para
o ar com os dedos em V. Já no “Concerto para Piano Nº 4 em Sol maior” parteja um
Allegro moderato com a estrutura óssea de um recém-nascido e sugere um Andante
con moto como só um filósofo o poderia fazer e analisa o Rondo-Vivace ao
microscópio. Na apresentação fala do “culto da personalidade” e do modo em que
o conceito atrapalha a capacidade de “trazer a lume uma simplicidade primitiva,
presente em todos nós”, e do objetivo em operar um “milagre simples: abrir um
canal até à nascente da qual toda a música emana”.
Não se pode dizer que tenha feito
outra coisa ao longo dos anos, embora, somando as gravações da Deutsche
Grammophon às da Erato (estas, recentemente compiladas em “The Complete Erato
Recordings”), se detete algo que a conclusão do contrato com a chancela alemã,
aliada à estreia pela Onyx, indicia poder ter chegado ao fim: a autofágica
seleção de repertório. Seja como for, para iniciados, revela-se indispensável a
antologia “Complete Solo Recordings”, na qual se reúnem discos lançados entre
1989 e 2013. Aqui está o seu hagiográfico Schubert, cercado de murmúrios, polvilhado
de feitiços, um escudo para manter à distância o mundo hostil: no “Improviso em
Si bemol maior”, a princípio, lembra a menina que se aproxima de uma poça com
receio e curiosidade, e logo depois é como se acompanhasse o golfinho que tem
tatuado no pulso direito aos mortais numa piscina. Está o Bach, da “Partita Nº
1”, que toca como quem invoca vidas passadas, ou da “Suíte Inglesa Nº 3”,
repleta de espelhos, algo baça e mecânica, uma mulher de meia-idade a jogar
Mahjong. E o Beethoven da sonata ‘Ao Luar’, em que as mãos são faróis a rasgar
a noite. Ou um Schumann, mais próximo do pensamento do que da ação, do espírito
do que da carne, tímido até perante as suas notas. Está o Chopin, da “Berceuse em
Ré bemol maior”, cintilante como a purpurina metálica das estrelas num mar de
agosto, dos “Noturnos”, do segundo Prelúdio, que se interpreta a olhar por cima
do ombro – e o proto-minimalismo do terceiro e a proto-bossa nova do quarto e o
vento a lutar com Buster Keaton do 12º - e o das “Mazurcas”, que tempera com
mão de cozinheira, e o das “Valsas” das professoras de balé. Está, claro, o
eutésico Mozart, da integral de sonatas, de sorrisos e suspiros, com João Pires
a recordar a cada compasso todos os metros de viagens que fez enquanto
menino-prodígio: as vistas panorâmicas, os segredos a cada curva, os enjoos, as
miragens, as saudades. Cada uma que termina é como uma porta a bater com a corrente
de ar na outra ponta da casa.
No ano passado, à revista “Pianiste”,
declarava que “o comércio nada tem a ver com a arte”, e que receava que os
artistas que tal não compreendiam acabassem por “perder a alma”. Em 1997, ao
“Libération”, reconhecia ter assinado pela Deutsche Grammophon “porque
precisava do dinheiro” que lhe permitisse oferecer às filhas “algo mais que uma
vida no campo”. Em 1986, anunciava ao Expresso: “No momento em que sentisse que
estava metida num comércio, vinha-me embora”. Foi tudo o que quis e muito do
que não quis, foi mantendo os ideais e perdendo uma alma que tentou
repetidamente reencontrar. Partiu e talvez regresse, um dia. Por acaso,
chama-se simplesmente Maria.
Maria João Pires “Complete
Solo Recordings” (20 CD Deutsche Grammophon, 2014)
Beethoven: Piano Concertos 3 & 4 - Maria João Pires (p), Swedish Radio Symphony Orchestra, Daniel Harding
(d) (Onyx, 2014)
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