Remontam a 2014, estas gravações, quando Unsuk Chin (n.
1961) foi a Compositora em Residência na Casa da Música. Note-se, aqui, o
“Concerto para Violino” (2001), com a presença de Viviane Hagner e Ilan Volkov,
uma peça absolutamente estranha e idiomática, ainda que possua estrutura
eminentemente clássica, com “o andamento de abertura seguido de um andamento
lento, e depois um scherzo e finale”, como bem apontou Habakuk Traber.
Ao contrário do que viria a acontecer no “Concerto para Violoncelo” (2009/2013),
por exemplo, solista e orquestra não estão em permanente oposição, nem a seta
do tempo aponta tão decididamente num sentido só. Aliás, comparada com uma
gravação anterior, Hagner consegue agora um equilíbrio maior entre o
virtuosismo coletivo e a violência individual que a peça pede. A certa altura dá-se
uma suspensão narrativa ao nível dos principais acontecimentos, como se
convergissem para o mesmo espaço dois universos de ordens distintas, o que
remete para uma declaração de 2003 da sul-coreana: “A minha música é um reflexo
dos meus sonhos. Eu tento converter em música as visões de luz imensa e a
incrível magnificência de cores que vejo flutuando pelo quarto (…) e ao mesmo
tempo formando uma escultura sonora.” Esta frase poderia aplicar-se a “Rocaná”
(2008), que significa “sala de luz”. Num andamento contínuo, de cerca de 20
minutos, é muito o que ilumina e ilude, revela e reserva, encandeia ou engana,
nomeadamente quando associado à perceção do comportamento dos raios de luz,
suas “distorções, refrações e ondulações”. Ou seja, é uma obra que questiona permanentemente
as relações entre as entidades físicas, que é fugidia, fluida, fugaz. Nessa
perspetiva, que contraste proporciona a audição de “Gougalon (Cenas de um
Teatro de Rua)” (2009/2011), uma das obras-primas de Chin, com o Remix Ensemble
capaz de absorver e projetar toda a ironia e emoção da peça, ora
transformando-se numa exuberante orquestra de gamelão, ora invocando a
languidez de uma banda de lupanar.
Textos publicados no semanário português Expresso/ Articles published on the Portuguese weekly Expresso
27 de agosto de 2016
Pascal Niggenkemper 7ème Continent "Talking Trash" (Clean Feed, 2016)
Não há uma designação irrevogável
para as concentrações de detritos que se encontram à superfície dos oceanos e
que possuem como paradigma aquela que se vai apelidando de Grande Depósito de
Lixo do Pacífico ou, na caracterização de Charles Moore, Grande Sopa de Lixo do
Pacífico. Em “Moby-Duck”, de Donovan Hohn, também Curtis Ebbesmeyer recorre à
metáfora, aproximando-a aos giros oceânicos: “É o que acontece quando mexes a
sopa com a colher e ela continua a rodar uns segundos”. Falando acerca da
acumulação de materiais não biodegradáveis no Giro Pacífico Norte pela ação das
correntes marítimas, dizia: “Velejavam por aí conhecidos meus até repararem num
frigorífico aqui, num pneu acolá, boias de vidro de antigas redes de pesca a
perder de vista, plástico por todo o lado.” A descrição traz à memória a passagem
das “Vinte Mil Léguas Submarinas” em que o Náutilus atravessa o mar de sargaços.
Também o cartaginês Himilcão terá referido uma zona algácea em que “bestas
marinhas se movem vagarosamente”. Hoje, trabalhos de investigação como os de Moore
obrigam a substituir os sargaços pelos plásticos e a admitir que mesmo nos
oceanos não há besta maior do que o Homem. Numa área superior a um milhão de
m2, Moore recolheu amostras desse caldo pestilento que batizou de “sopa
plástico-planctónica” e no qual se reconhecem consequências devastadoras para o
meio ambiente e para a cadeia alimentar. Na arte, que não apenas no fotojornalismo,
a câmara de Susan Middleton retratou a situação ao imortalizar o cadáver de um
albatroz que tinha morrido de fome com o bucho cheio, com 250 fragmentos de
plástico nas entranhas.
Agora é o contrabaixista Pascal Niggenkemper a deixar-se
inspirar por tudo isto, por esta “absurda realidade”, com o objetivo de levar esse
“sétimo continente a cantar, chiar, zunir, zumbir e gritar”. O resultado, como
se pode imaginar, aproxima-se da música concreta e, até, da música industrial,
com os pianos preparados de Eve Risser e Philip Zoubek entremeados de objetos
enferrujados e pedaços de madeira, os clarinetes de Joris Rühl e Joachim
Badenhorst imitando guinchos de aves marinhas e o conjunto de flautas de Julián
Elvira, que mais parece a canalização do Náutilus, como que saído das
profundezas. Dotado da fantasia que o tema desmerece, é também deslumbrante.
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20 de agosto de 2016
“Ramon Llull: Temps de Conquestes, de Diàleg i Desconhort” (Alia Vox, 2016)
Sílvia Bel, Jordi Boixaderas,
Waed Bouhassoun, Lior Elmaleh, Moslem Rahal, Hakan Güngör, Yurdal Tokcan, Haïg
Sarikouyoumdjian, Dimitri Psonis, La Capella Reial de Catalunya, Hespèrion XXI,
Jordi Savall (d)
No prólogo do “Livro de Maravilhas”, de Ramon Llull (1232-1316), porventura um dos seus escritos mais novelescos, Félix, o protagonista, prevenido já quanto ao estado das coisas, recebe do pai a incumbência de partir em peregrinação pelo mundo sem deixar de se deslumbrar e espantar com o que à sua frente aparecer: “E será a falta de caridade e devoção do nosso século que primeiro te deixará pasmo”, avisa. Setecentos anos depois, também ele marcado pelo signo da itinerância, é a vez de Jordi Savall fazer eco destas palavras: “Visitei a ‘selva’ de Calais acompanhado por músicos vindos da Síria, da Turquia, de Israel ou da Grécia”, contou à revista francesa “L’Express”. “Queria entrar em contacto com os refugiados, mas igualmente com os habitantes da cidade. Visitei os acampamentos e ouvi coisas difíceis e pungentes. Diziam-me que não tinham intenção alguma de ir para ali viver mas que não esperavam um tratamento tão pouco humanitário. São homens, mulheres e crianças em profunda aflição.”
Nessa perspetiva, o que Albert Soler, do
Centro de Documentação Ramon Llull, da Universidade de Barcelona, escreve sobre
um é válido para o outro: “Apesar da viagem, para Llull, se provar sobretudo um
instrumento necessário à prossecução de projetos missionários, não deixa ao
mesmo tempo de refletir um espírito de abertura e uma vontade indómita de comunicar.
As suas propostas intelectuais e espirituais levam o leitor a abandonar as suas
próprias zonas de conforto, a formular e dar resposta a questões por si mesmo ou
a disputar o que lhe é dado de antemão a conhecer.” Também no caso de Savall se
fala amiúde em missionarismo. E ele costuma repetir mais ou menos que “a arte é
uma das dimensões mais nobres da vida na terra, mas que não é suficiente em si
mesma. O estetismo pode levar à desumanização. Se a música não for mais que uma
distração ou, inclusivamente, um ideal, desligado de aspetos espirituais, das
dores dos outros e do quotidiano, então, sim, poderá conduzir a
totalitarismos.”
Daí jamais abdicarem de enunciar tudo aquilo
a que se propõem, estas edições de Savall. Multilingue e multifacetada, “Ramon Llull” abrange dois CD e um livro com cerca de 300
páginas, profusamente ilustrado, onde se incluem ensaios e notas biográficas e
cronológicas acerca da vida desse pensador, poeta, místico e matemático do
medievo mediterrânico. A música, gravada a 28 de novembro do ano passado, no
Salão do Tinell, em Barcelona, propõe a recriação da banda sonora que
acompanhou a vida de Llull, compreendendo música sacra (cristã,
muçulmana e judaica), bem como memórias da Maiorca islâmica
(com taqsim, danças mouriscas ou moachahas, interpretadas por instrumentistas
sírios, marroquinos, turcos e gregos que, diz Savall, “são verdadeiros
conservadores e ao mesmo tempo (re)criadores de um património intangível
antiquíssimo”) e das cortes aragonesas de Jaime I, Pedro III, Afonso III
e Jaime II, por intermédio de obras de trovadores e
jograis como Raimon de Miraval e Bernat de Ventadorn.
Em notas de apresentação, Savall
torna claro o complexo de emoções que de si se apoderou: “Ramon Llull exemplifica
o homem que vive intensamente o seu tempo e que permanece fiel aos seus princípios
e ideias até às últimas consequências, convencido de que a arte, o conhecimento,
a fé e o diálogo são instrumentos para melhorar o mundo. Pensador, poeta,
filósofo, teólogo, orador, evangelizador, tudo o que fez, e tudo aquilo em que
acreditava, se revela um inesgotável testemunho de ensinamentos que permanecem
em vigor e, mais do que nunca, necessários. É por isso indispensável recordar e
alimentar a sua mensagem, estudando e difundindo a sua obra. Desse modo, o seu
espírito continuará a conduzir-nos à luz e à sabedoria, imprescindíveis num
mundo sem rumo em que, a cada dia que passa, o fanatismo e a estupidez nos
afastam inexoravelmente dos ideais pelos quais se regeu mestre Ramon: os de uma
civilização que fundamenta o seu humanismo no ensino e no diálogo, na
espiritualidade e na beleza.”
Impõe-se aqui uma ressalva. É que,
como sugeriu Luísa Costa Gomes no romanceado “Vida de Ramon” (publicado em 1991
e alvo de uma segunda edição revista este ano), “alguns comentadores torcem
Ramon para a imagem de um beato ecuménico, interessado sobremaneira no diálogo
das civilizações, na procura da raiz única da religião universal, e passam
ligeiramente ao lado do seu dogmatismo e dos projetos de Cruzada. É verdade
que, no princípio, enquanto os fracassos da Arte [‘Ars Magna’] não eram
visíveis e amargos, se inclinou para as liberalidades, deixando em aberto
discussões, persuadido da evidência que ele mesmo transportava, a saber, de que
as luzes da razão e da demonstração fariam derrubar os limites dos credos
particulares não-católicos. Mas a velhice encontrou-o cada vez mais aferrado à
ideia autoritária que vinha da mistificação inventada pelo próprio de que os
povos muçulmanos eram contrariados pela opressão dos déspotas e que, varridos
estes, aqueles aceitariam a pregação cristã.”
Mas Savall, cuja curiosidade se
diria tão incansável e transbordante quanto a de Llull, contorna o embuste da
metafísica. Aliás, imagina-se o catalão a pegar na “Vida Coetânea” do maiorquino
(o relato biográfico que Llull deixou aos cartuxos de Vauvert), ler o seu
início (“Sendo Ramon senescal do Rei de Mallorques, ainda jovem, e muito dado a
compor cantilenas ou canções, estava uma noite sentado junto à cama, disposto a
compor e a escrever uma cantiga sobre certa dama a quem amava. Começava a
escrevê-la quando, olhando à direita, viu Nosso Senhor Jesus Cristo pregado na
cruz. Sentiu medo e, deixando o que tinha entre mãos, meteu-se na cama.
Levantando-se no dia seguinte, voltou às vaidades de sempre; e passados quase
oito dias, no mesmo lugar e à mesma hora, de novo se dispôs a escrever a dita
canção; e de novo lhe apareceu o Senhor na Cruz”, etc.) e a pensar para si
mesmo: ainda que o ponto não seja esse, que pena nada se saber dessa canção que
Llull tentava a todo o custo completar.
Porque Savall crê numa frase de
Elias Canetti que vem repetindo há uns bons 15 anos: “A música é a história
viva da humanidade, da qual, de outra maneira, possuímos apenas as partes
mortas.” E, já agora, deve comungar dessoutra que abdica de citar: “Quanto mais
densamente se povoa o mundo e quanto mais mecanizada se torna a forma de viver,
mais indispensável se deve tornar a música.” Pois, tal como esse descendente de
judeus sefarditas evacuados à força de Espanha em 1492, também Savall vê a
música como um “potente e intacto reservatório de liberdade”. Disse à “Folha de
S. Paulo”, em 2001, que “a música não pode ser uma ciência, nem uma
arqueologia. É sempre um ato criativo, e o ato criativo não pode ser uma imitação.
Não pretendemos interpretar estas músicas como foram interpretadas na sua época.
O que pretendemos é a fidelidade aos textos, ao espírito e caráter. A vigência
de uma música depende da capacidade que tem de emocionar-nos hoje como um dia emocionou
os seus contemporâneos.”
Nessa medida, esta edição, cujo
subtítulo abraça o paradoxo (“Tempos de conquistas, de diálogo e de
desconsolo”), é exemplar, pois a pretexto do périplo de Llull por Santiago de
Compostela, Montpellier, Roma, Paris, Túnis, Chipre, Génova, Bugia e Sicília,
os trechos de “Livro de Contemplação”, de “Vida Coetânea”, do belíssimo “Livro
do Amigo e do Amado” ou de “O Desconsolo” (recitados em catalão por Sílvia Bel e Jordi Boixaderas) surgem investidos de um
sentimento que por si sós não poderiam possuir, e que deriva de páginas
sublimes como são “Aisse cum es genser Pascors”, de Miraval, “Maqam Hijaz”, de
Ibn Zaydún, “Santa Maria, strela do dia”, de Afonso X, o Sábio, “Ya Mariam el
bekr” (um hino mariano árabe, cantado de forma deslumbrante por Waed Bouhassoun),
“Billadi askara min abdi al-lama” (uma dança mourisca), “Deus est ainsi comme
li pelicans”, de Teobaldo I de Navarra, o Trovador, ou “Qamti be – Ishon Layla”
(um lamento judaico na voz do insuperável, neste contexto, Lior Elmaleh).
Llull morreu
em 1316, vítima da intolerância. Deixou escrito que os outros são “iguais a nós
e à nossa natureza”. Nunca imaginou que ao fim de sete séculos ainda se
pusessem em causa as suas palavras.
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13 de agosto de 2016
Shostakovich/Glazunov: Violin Concertos (Decca, 2016)
Com a chegada de “O Ruído do Tempo”, de Julian
Barnes, às livrarias, também nos escaparates das lojas de discos se acumulam títulos
consagrados a Dmitri Shostakovich (1906-1975). Gautier Capuçon, por exemplo,
com a Mariinsky, e sob direção de Valery Gergiev, gravou os dois concertos para
violoncelo, acentuando-lhes o contraste (Erato); Andris Nelsons, por sua vez, ao
comando da sinfónica de Boston, prosseguiu com a série “Under Stalin’s Shadow”,
registando quinta, oitava e nona sem se chegar a comprometer com as muitas
perplexidades que despertam (DG); já Vladimir Ashkenazy, com Zsolt-Tihamér
Visontay, Mats Lidström e Ada Meinich, propõe um retrato mais abrangente e ao
mesmo tempo mais íntimo do seu compatriota, através dos trios para piano,
violino e violoncelo e desse dilacerado e simultaneamente dilucidado derradeiro
opúsculo que foi a “Sonata em Dó maior”, para violeta e piano (Decca).
O
retrato é o do costume: o de um homem solitário que busca refúgio na
intimidade, bom numa série de coisas e fraco em muitas mais, chamado, enquanto
paladino do regime soviético, a desempenhar um impossível papel que implicou
todo o tipo de deserções da sua própria consciência e um sem-fim de
recriminações e vitimizações, ocasionalmente estudadas e finalmente traídas
pela excelência da sua escrita. Nessa perspetiva, não se vislumbra obra mais
transparente do que o “Concerto para Violino em Dó maior”, composto entre
1947-48 e de pronto enfiado na gaveta, não fosse a sua publicação obrigá-lo a
mais um ato de penitência perante Andrei Zhdanov (o concerto veria a luz do dia
em 1955, após a morte de Estaline, quando Oistrakh o estreou). Aqui, da
aberrante languidez do Noturno e do grotesco exercício do Scherzo à hermética melodia da Passacaglia
e ao sopro final do acossado que se pressente no Burlesco, Benedetti está simplesmente arrebatadora. Como
complemento surge o Op. 82, de Glazunov, para mostrar ao que soava a música
russa antes da Revolução, da Grande-Guerra ou da Grande Purga.
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