Nas célebres “Memórias do Conde de Gramont” dá-se com
este excerto: “Havia um italiano na corte [de Carlos II de Inglaterra], famoso
por tocar guitarra. No que à música diz respeito, era um génio (…) de um estilo
tão elegante, e capaz de revelar tanta ternura, que até o mais dissonante dos
instrumentos tornava harmonioso. As suas obras tinham de tal modo conquistado o
favor do rei que não havia quem não tentasse tocá-las.” Claro que, sem demora, e
porque o centro do poder político é sempre a capital da intriga, a narrativa
desliza para as imediações do escândalo precisamente à custa de uma sarabanda
desse tal italiano que dava pelo nome de Francesco Corbetta (ca. 1615-1681),
que terá certamente conhecido Catarina de Bragança e que viria a dar lições a
Ana da Grã-Bretanha.
Também neste seu novo disco se dedica Rolf Lislevand a
peças suas. E será a atmosfera cortesã, para não dizer a etiqueta, a levá-lo
subitamente a recordar uma das primeiras coisas que aprendeu com um dos seus
mestres, presumivelmente Hopkinson Smith, embora ele não o identifique:
“Apercebi-me como um pequeno número de notas se assemelha a um gesto mais
gracioso do que qualquer movimento do corpo humano, mais figurativo do que, na
pintura, uma paisagem inteira, tão bem articulado quanto a poesia mais
claramente pronunciada”, escreve em notas de apresentação que descrevem exatamente
o que aqui se escuta. Aliás, evocando as passagens de Corbetta por Versalhes, o
alaudista norueguês, que normalmente integra os conjuntos de Jordi Savall, adiciona
ao seu programa pequenas pérolas de Robert de Visée (ca. 1655-1732/33) para
guitarra barroca e teorba. Será inevitável pensar-se na relação de Visée com
Luís XIV, cujas ceias calmamente acompanhava e cujos passeios matinais pelos
jardins do palácio musicava, docemente dedilhando as cordas do seu instrumento,
ainda que do monarca se mantivesse à protocolar distância de dois passos.
Trata-se, portanto, de música de uma intimidade inconcebível, inelutável e ao
mesmo tempo inviolável. Daí, talvez, Lislevand insistir em “La Mascarade”, um
rondó de Visée que lembra que as aparências iludem e que nada é só o que parece.
Pois muita desta música se assemelha mais à insinuação da própria música, feita
de segredos, subtilezas, sussurros, sugestões, vénias contínuas.
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