Passando
os olhos pelo alinhamento de “Shelter”, o disco do quarteto homónimo composto
por Ken Vandermark (palhetas), Nate Wooley (trompete), Steve Heather (bateria)
e Jasper Stadhouders (guitarra elétrica e baixo), treme-se perante a inesperada
evocação da famosa “Saga de Njáll, o Queimado”, receando o ressurgimento
daquele jazz movido a uivos e a hormona macho, blindado por um arnês e cegado pela
cólera e pronto para lavar a sangue e suor a honra ferida no campo de batalha
mais próximo. Depois, respirando fundo, lá se escuta ‘Burnt Njal’ e o resultado
não é de todo o que se esperava – aliás, dir-se-ia que Wooley, que a compôs,
aproveitou a associação a esse universo particularmente viril do medievo
islandês para meditar acerca das próprias limitações da música improvisada tal
como a promove a maior parte dos seus praticantes. Isto é, estará de acordo com
o que salientou Ármann Jakobsson: que, na essência, a “saga critica o conceito
de base daquela misógina sociedade ao demonstrar que o ideal de masculinidade é
tal maneira restritivo que se torna opressivo para o indivíduo e destruidor
para o grupo.” Por isso, na sua estrutura, a peça possui farrapos de marchas e
malhas de fanfarras, sim, mas mais como uma meditação acerca do controlo de
impulsos do que outra coisa qualquer. É um assunto há muito na ordem do dia.
Por exemplo, falava com Vandermark em agosto de 2008 e dizia-me ele que um dos
seus principais interesses enquanto compositor era “precisamente essa dinâmica
entre o que é escrito e o que é improvisado”. Ou seja, que quando se escreve
para improvisadores é preciso ter em mente que, no fundo, se está a “enquadrar
uma música espontânea”. “Temos de conceder espaço suficiente para a liberdade
de cada músico”, continuava, “senão corremos o risco de criar pouco mais que um
conjunto de limitações.” Podia ser o tema do décimo quarto Portalegre JazzFest,
a par, já agora, de outra ideia que o norte-americano partilhava: “Olhar para o
passado ajuda a encontrar soluções para desafios criativos iminentemente
contemporâneos”. É um credo extensível ao conjunto coliderado por João Hasselberg e Pedro Branco, que tem disco
novo, “From Order to Chaos”, bem como àqueles grupos nórdicos como Ballrogg (Klaus
Ellerhusen Holm, Roger Arntzen e David Stackenäs) ou Friends and Neighbors (André Roligheten, Thomas Johansson, Oscar
Grönberg, Jon Rune Strom e Tollef Ostvang), que, lembrando Njáll, se preparam para
incendiar o palco do CAE e ficar queimados pelo sol alentejano.
Shelter
23
março, quinta-feira, 22h, ZDB, Lisboa
24
março, sexta-feira, 21h30, CAE, Portalegre
14º
Festival Internacional de Jazz de Portalegre – Portalegre JazzFest
23
de março a 1 de abril, Centro de Artes do Espetáculo de Portalegre
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