11 de março de 2017

Wert: Sacred Motets (Harmonia Mundi, 2017)


Com redundância, ao jeito dos estrondosos rojões com que os espetáculos de fogo-de-artifício terminam, o Stile Antico coloca “O altitudo divitiarum” a fechar o alinhamento deste seu CD dedicado à obra sacra de Giaches de Wert (1535-1596). Mas o ponto estava feito: contrariando a narrativa em curso, que estes motetos consagrados às práticas litúrgicas da igreja de Santa Bárbara, no Palácio Ducal de Mântua, são mais do que a expressão domesticada dos instintos do compositor (cf. “Musica Religiosa”, com o coro Currende e o Concerto Palatino dirigidos por Erik Van Nevel, num disco da Accent de inícios dos anos 90, por exemplo, ou o mais recente “Il secondo libro de motetti”, pelo Collegium Regale, na Signum). Isto, claro, quando comparados com a sua exuberante produção enquanto madrigalista, que, de certa forma, estendeu o tapete à de Claudio Monteverdi, seu sucessor – e nas últimas décadas surgiram no mercado antologias que o sustentam via Cantus Cölln, Consort of Musicke e Venexiana. Mas, sim, a verdade é que se estava ainda no tempo de Guilherme Gonzaga, adepto da Contrarreforma Tridentina e devoto de Palestrina, quiçá não exatamente por esta ordem. Daí que se tenha instalado essa ideia peregrina, talvez: que por oposição a essoutro, originário de um meio em se reconhece, até, uma abundância excessiva de humores, o trabalho menos mundano de Wert obedece em demasia ao cânone. 

Depois, lá está, escuta-se “O altitudo divitiarum”, com um intervalo ascendente de décima logo à quarta sílaba só para assustar e, após um tratamento absolutamente convencional do versículo que ilustra a “profundidade da sabedoria e conhecimento de Deus”, o aparecimento de umas quintas paralelas algo escandalosas em “Pois, quem conheceu a mente do Senhor? Quem se tornou seu conselheiro? Quem primeiro lhe deu alguma coisa, para que Ele lhe recompense?”. Conhecendo a sua história em Mântua, os muitos problemas que tinha com os seus colegas na corte e a reputação de corno de que não se livrava à custa do casamento com a malograda Lucrécia Gonzaga, dir-se-ia que Wert dramatizava indecorosamente este expoente da doxologia paulina do Novo Testamento e, como se diz nos palcos, derrubava a ‘quarta parede’ que o separava dos fiéis, desafiando-os. Há mais pistas nesse sentido em “Amen, Amen dico vobis”, “Vox in Rama”, “Peccavi super numerum” ou “Ascendente Jesu”, que mais parecem amostras de musica reservata do que outra coisa qualquer. Mas a maior de todas está no subtítulo do CD: teatro divino.

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