Piotr
Anderszewski passeia pela sua Varsóvia natal de câmara na mão, mas não produz uma
versão pessoal do Kino-Pravda, longe disso. Sem que interfira especialmente em
cada espaço, é certo, regista cenas do quotidiano, blocos de apartamentos
soviéticos ou o renovado centro histórico, mas, acima de tudo, o seu olhar vai-se
deixando atrair por cemitérios, prédios devolutos, ruínas. Passa grande parte
do tempo captando imagens de paredes – umas com marcas de incêndio, outras
cobertas de graffiti – e muros de
tinta descascada com coroas de arame farpado (o seu avô morreu em Auschwitz).
Mais do que da perspetiva do arqueólogo, observa a cidade do mesmo modo que um
geólogo examina conjuntos de rochas sedimentares. E numa simbologia algo
heraclítica sucedem-se na montagem planos obtidos nas margens do Vistula, com o
ruído leve da água corrente a misturar-se com o contínuo rumor da circulação
automóvel. A este seu documentário, de forma vagamente antitética, chamou “Je
m’appelle Varsovie”. Em nota introdutória enumera os eventos cataclísmicos que
constituem parte significativa da história da capital polaca ao longo do século
XX e termina assim: “Como em qualquer outro lugar, a vida continua, ainda que
tenhamos cadáveres sob os pés. E há momentos em que os seus fantasmas se
levantam.”
Não admira, portanto, que há coisa de um mês dizesse ao “The New
York Times” que tinha “um trauma no que diz respeito a Varsóvia”, que trocou
por Paris e Lisboa. Trata-se, então, de catarse. Ou, quiçá, de aceitar o facto
de que exílio e alienação andam muitas vezes de mãos dadas. Daí que neste CD de
um lirismo tão magoado, a acompanhar o lançamento em DVD do seu filme, Anderszewski
inclua a “Fantasia em Dó maior” (cujo esmagador primeiro
andamento chegou a ter o título de “Ruínas”) e “Tema e Variações em Mi bemol
maior” (vulgo, ‘Variações Fantasma’), de Schumann, e as cirscunspetas “Fantasia” e “Sonata para Piano Nº 14”, ambas naquela tonalidade
(o Dó menor) que, a escrever para piano, Mozart tinha reservado unicamente para
a “Sonata Nº 8”, composta por alturas da morte da mãe. Mais fantasmas.
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