Se os
atuais não o fazem já, é certo e sabido que futuros motores de pesquisa tratarão
de pôr em evidência uma secundaríssima ligação entre Andrew Hill e Ran Blake:
em 2007, morreu o primeiro no dia de anos do segundo. E cuidarão de relatar o
surto de atividade que acompanhou cada um na fase crepuscular das respetivas
carreiras. Aos 80, Blake anuncia o lançamento de “Chabrol Noir” (Impulse) quando
ainda há pouco dava ao prelo “Ghost Tones: A Tribute to George Russell”
(A-Side) e “Kitano Noir” (Sunnyside), novo capítulo da sua parceria com a cantora
portuguesa Sara Serpa. Também em 2014 colocou dois discos no mercado, homenagens
a Abbey Lincoln e Chris Connor. Por sua vez, logo antes de falecer, Hill gravou
“Time Lines” e acompanhou os esforços da Blue Note em honrar o seu património
através de sucessivas edições – títulos da década de 60 como “Passing Ships” ou
“Pax” permaneciam até então inéditos e todos os outros, à exceção de “Point of
Departure”, continuavam congelados na era analógica. Ao radialista Gary
Vercelli, em 1986, declarou isto: “Ao gravar para a Blue Note descobri que não
teria como recompensa fama e fortuna mas sim fama e fome.” Não foi completamente
honesto: também alcançou bastante infâmia. Tal como Blake, encontrou refúgio no
ensino. Aí, sim, traçam-se facilmente paralelismos entre os dois. Afinal, nas
universidades de Colgate, Portland State, Wesleyan, Michigan ou Harvard,
discursava Hill sobre a música improvisada como “um ato de imaginação do
coração” enquanto Blake, sempre no Conservatório de Nova Inglaterra, falava às
suas turmas acerca da “primazia do ouvido”. Ou seja, davam mostras de querer
dizer o mesmo: que o ensino tradicional não apela às capacidades mais prodigiosas
dos seus alunos. Talvez por isso, por esse didatismo inconformado, tenham participado
ambos em programas de educação musical em prisões – Hill ao serviço do New York
State Council for the Arts e do Instituto Smithsonian, Blake no departamento de
Community Services do NEC.
Porém, que
não apenas aos seus agentes mais subversivos, o percurso de Hill e Blake serve
igualmente para lembrar um período na indústria fonográfica norte-americana de séria
resistência ao jazz, durante o qual nem o prestígio institucional abria portas.
Ao longo dos anos 80, só os esforços coordenados de pequenas chancelas
europeias como a Soul Note permitiram comprovar a vitalidade artística de tão
ilustres pedagogos. Demonstra-o esta série de integrais de que está a chegar novo lote às lojas.
A Soul Note
proporcionou duas idas a estúdio a Andrew Hill. Da inicial (junho de 1980) provêm
“Faces of Hope”, a solo, e “Strange Serenade”, com Alan Silva e Freddie Waits. Dizia-se
que Hill era natural de Port au Prince (nasceu em Chicago, em 1931) e retiravam-se
todo o tipo de ilações do equívoco – se a sua origem fosse Marte dava mais ou
menos no mesmo. Hill recorre a uma dissonância calculada, sensual, que mais que
um observador associou a Scriabin embora ele falasse de Debussy. No LP em que
está desacompanhado há um ‘Rob it Mohe’ que cita ‘Blue Monk’ e, de facto, muito
do que aí se passa deve algo a Monk. Da sessão final (julho de 1987) procedem
“Shades”, com Clifford Jordan, Rufus Reid e
Ben Riley, e “Verona Rag”, novamente só, dois dos seus álbuns mais consistentes.
Há frases marcadas por acentos inquietos, como as daquelas crianças que trocam
os timbres às vogais. Traz à memória Bud Powell e Art Tatum mas no tema-título
do recital a solo invoca o Schubert das últimas sonatas.
Já a ligação de Ran Blake à editora italiana foi mais
dilatada, com sete entradas em catálogo. A certa altura, de tão gríficas, já se
sabia o que delas se esperar – mas só na medida, digamos, em que nos anos 50
ninguém ignorava o que aguardar de um filme de Hitchcock. É o caso de
“Epistrophy” (1992), dedicado a Monk, aqui tão influente quanto em Hill, de “Unmarked
Van” (1997), um tributo a Sarah Vaughan entre o primitivo e o exótico, ou de
“Indian Winter” (2005), com David Fabris na guitarra elétrica – tão previsíveis
quão perfeitamente capazes de subverter expetativas. As pérolas são “Improvisations”
(1981), duetos de piano com Jaki Byard em que ocasionalmente se invertem papéis,
“Duke Dreams”, a alienante exaltação do legado de Strayhorn e Ellington a
partir do divã de um psicólogo, “Suffield Gothic” (1984), a onírica evocação da
sua cidade natal (Bob Blumenthal chamou-lhe o “Amarcord” de Blake), e “Short
Life of Barbara Monk” (1987), elegante, inquietante, a síntese das suas
obsessões.
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