Carrega-se
no play e, cintada de silêncios, mais
estrófica que histriónica, ouve-se a voz de Stan Getz em cuidados para não
entaramelar as palavras, como se receasse blasfemar. Diz assim: “Em meu
entender, João Gilberto é o cantor mais singular da atualidade... Um autêntico
originador. A sua capacidade de cantar sem vibrato,
mas com emoção, é irrepreensível. E o seu inimitável sentido rítmico, o seu
intimismo, a par de um maravilhoso trabalho à guitarra, tornam-no único. Que um
intérprete tão talentoso e eminente hesite tanto em tocar ao vivo é um daqueles
mistérios. Mas ele está aqui esta semana. Senhoras e senhores: João Gilberto!”
Sentado entre a desatenta audiência, Gregory Corso terá pensado: “Que
profundidades tão simples/ Que simplicidades tão profundas”. Estava-se em 1976,
no Keystone Korner, em São Francisco, e, como Harvey Milk na política, também o
quarteto de Stan Getz se preparava para fazer história, levando a palco João
Gilberto seis noites de seguida, de 11 a 16 de maio. Às lojas, nessa altura, chegava
“The Best of Two Worlds”, o reencontro em disco entre o norte-americano e o
brasileiro, doze anos depois de “Getz/Gilberto” ter posto o mundo inteiro a
cantarolar ‘The Girl from Ipanema’. Presumia-se que tivessem feito as pazes.
Afinal, como se sabe, além dos Grammy que arrumou no fundo de uma gaveta,
muitos amargos de boca tinha dado o LP a João, começando porventura pelas sessões
de estúdio, ou pela supressão da sua voz na canção que imortalizava Helô
Pinheiro, e terminando, talvez, numa repartição de royalties de fazer rir ou no caso entre Getz e aquela que era então
sua mulher, Astrud.
Nada disto se menciona nas notas de apresentação deste
“Getz/Gilberto ‘76”, gravado ao longo dessa semana de atuações no Keystone
Korner. É estranho. Para mais quando se trata da Resonance, uma editora que, contrariamente
a João, faz alarde do Grammy que recebeu em 2015 pelo que escreveu Ashley Kahn
no livreto de “Offering: Live at Temple University”, de John Coltrane. Mas ainda
mais extraordinário é James Gavin, reputado autor de biografias sobre Peggy Lee
ou Chet Baker, vir agora dizer que Gilberto se tinha juntado a Luiz Bonfá e a
Getz em “Jazz Samba Encore!” (deve estar a pensar em Jobim) ou, por exemplo,
que ‘Chega de Saudade’ se traduz em inglês por “longing has arrived” (esta, nem
o Google Translate). Sobram os depoimentos dos membros em vida do quarteto
(Billy Hart: “O João dizia-me: toca mais como a chuva”; Joanne Brackeen: “Ele,
sozinho, soava já como uma banda inteira”) e, claro, a voz daquele que, como a
serpente no Éden, precisa apenas de abrir a boca para sujeitar quem o escuta ao
seu encanto – uma metáfora muito pouco original, mas, aqui, pelo constante
sibilar da fita, de caráter mandatório. Getz sola economicamente, o
contrabaixista Clint Houston vai tocando as notas fundamentais de cada acorde
(o que, neste contexto, é como nadar contra a corrente), Hart tenta fazer de
Milton Banana (sem sucesso) e Brackeen, ao piano, tem a falta de decisão
daquela que, antes de lá entrar, precisa sempre de passar os dedos ao de leve
pela superfície da água para ver se está fria. João canta o que cantava na
década de 70 (‘É Preciso Perdoar’, ‘Águas de Março’, ‘Retrato em
Branco e Preto’ ou ‘Eu Vim da Bahia’) e o que sempre cantou (nomeadamente, de
Caymmi: ‘Doralice’, ‘Samba da Minha Terra’ e uma ‘Rosa Morena’ para a
eternidade). E o tempo recua e avança por sua causa. Quando se dá com estas
linhas, “Eu nasci com o samba, no samba me criei/ E do
danado do samba nunca me separei”, pensa-se: nem nós.
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