A certa altura, em “Great
Contemporary Pianists Speak for Themselves”, falando acerca de Edwin Fischer,
um dos seus mentores, Paul Badura-Skoda afirma que “a sua primeira importante contribuição
[no campo da educação musical] foi a ideia de que cada obra tem de ter uma mensagem”.
Isto é, que não há tal coisa como uma “música absoluta”, autotélica, cuja
qualidade intrínseca seja em si mesmo um fim. “Se ela tende a ser expressiva”,
prossegue, “tem de se ver muito bem o que é que quer dizer”. Imagina-se o Oscar
Wilde de “A Decadência da Mentira” às voltas no caixão (“A arte só se expressa
a si mesma”, escreveu o irlandês). Como tantos antes de si, Badura-Skoda vê a música
sobretudo como uma construção moral com poder de mudar o mundo para melhor. É um
otimista, apesar de ter sentido na pele o antissemitismo da sociedade austríaca,
principalmente após a Anschluss. Aliás, Andrea Bonatta costuma contar esta
história a seu respeito: “No seguimento de uma master class deu-se uma animada discussão em torno daquilo que
distingue uma grande interpretação. Será o virtuosismo, a paixão, a paleta de
cores, a poesia, o intimismo, as nuances?
Como o nosso professor [Badura-Skoda] estava sentado entre nós, e não tinha ainda
dado a sua opinião, alguém lhe perguntou o que é que para si havia de mais
significativo na questão. ‘A ética’, respondeu.” Nessa perspetiva, é
perfeitamente ajustado que a indústria fonográfica venha retribuir condignamente
a sua cuidadosa deontologia.
E já não era sem tempo: Paul Badura-Skoda fez 90
anos no mês passado e a Sony lançou “Plays Schubert – The Complete Piano
Sonatas” (a primeira edição em CD da sua integral de 1971 na RCA) e a DG colocou
no mercado esta antologia extraída aos arquivos da Westminster, também ela
recheada de estreias em formato digital. Com tamanho resgate, pode ser que se
deixe de baralhar nas lojas o nome do pianista com o do fabricante do Octavia!
Porque permanecem inconfundíveis, estas gravações, captadas entre 1950 e 1965.
Os concertos de Beethoven, por exemplo, com a Orquestra da Ópera de Viena
dirigida por Hermann Scherchen (logo um teste de fogo, portanto), surgem
despidos daquela solenidade natural e aceitam, antes, o deslumbramento com que
um prodígio manobra por modelos instituídos quando os tenta libertar da rotina:
com golpes de asa, espontâneos, sem soluços agógicos, de conceção monumental e
execução majestosa, tudo neles flui de modo efervescente, sem que a desinibição
perturbe a sua fascinante linearidade. Também os concertos de Mozart soam
cristalinos, fáceis, charmosos e desembaraçados – em particular o nº 20 e o nº
23, que Badura-Skoda gravou com Milan Horvat, o nº 22, em que comandou do piano
a Orquestra da Konzerthaus, e o nº 27, com Felix Prohaska. São momentos que não
acusam de todo o que em retrospetiva os seus registos a solo do período denotam
(em “Cenas da Infância”, de Schumann, no Op. 5 de Brahms ou em “4 Improvisos”,
de Schubert): que logo viria uma era (a de Perahia, Lupu, Freire, Pires,
Barenboim, Pollini e Argerich) que o deixaria pregado ao chão. Ele não se
importou minimamente.
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